Anotação para um romance terminado no World Trade Center


Evelena Boening

1)

João conhece Maria numa manifestação de caras-pintadas. Seus perfis psicológicos são muito diferentes:  João é de família conservadora. Maria  vem de familia destrambelhada.

2)

Ambos são bem apessoados, bonitos. Até mesmo devido à diferença de pensamentos e ações, se apaixonam. Maria é desajeitadíssima e João ri.  João age com dureza, Maria concorda

3)

Casam numa grande festa. Maria inventa milhares de detalhes nos docinhos, na decoração do salão e só arranja encrenca como, na ultima hora, trocar fitas azuis por amarelas.

4)

João agora se diz autônomo e começa a viajar a trabalho. Na volta, sempre relata as mesmas coisas: táxi em engarrafamento, o pessoal nas lojas não entendem o que ele quer. Não dá detalhes.  Maria, assume a conversa e conta, com todos as minúcias possíveis, a ida ao super, quando esqueceu de comprar chocolate e não pôde fazer aquela sobremesa para esperá-lo.

5)

João vai ficando mais calado e passa muito tempo consultando a internet, mas Maria não se dá conta e continua fazendo as trapalhadas de sempre: varrendo a casa, puxou a toalha da mesa com a vassoura, louça caiu e quebrou.

6)

João está firmando novas convicções e modificando seus hábitos. Viaja e passa cada vez mais tempo fora. Na volta, com pequenas variações, conta sempre as mesmas histórias do táxi, das lojas, da comida ruim.

7)

Maria começa a desconfiar de que há alguma coisa que ela não sabe. Pergunta pro João mas ele desconversa, se vira e vai embora, ou, então, briga e desvia o assunto.

8)

João, ao mesmo tempo em que nada revela sobre o que realmente faz,  começa a sentir insegurança quanto às trapalhadas de Maria. Para evitar perguntas, João, alegando necessidades da empresa, começa a dar pequenas tarefas para Maria, por exemplo: digitar uma carta, levar ou buscar isto ou aquilo no escritório ou na casa de amigos. Agora Maria acha que está entendendo o trabalho de João.

9)

João convida Maria para viajar aos Estados Unidos. João alega necessidade de ir à Miami e Maria fica em Nova Iorque. João dá à Maria a incumbência de entregar um documento no 95º andar da torre norte do World Trade Center, no dia 11 de setembro de 2001, às 08:30, sem falta.

10)

Ninguém se deu conta da ascendência étnica de João. Ajudado por ela, ele estava subindo na hierarquia da entidade terrorista onde a lei era:  acertar ou morrer. Maria, a desajeitada, estava causando problemas de segurança. João usou o World Trade Center para conseguir o álibi perfeito para sumir com Maria.

Sedução

(..) Mas quando eu chego cansado
Teus braços estão me esperando
Lupicínio Rodrigues, Exemplo

Jussara Maria Lucena

Quando o Chico apareceu, de madrugada, trocando as pernas e cheirando à cachaça, eu gelei. Com certeza tinha aprontado de novo. Toda vez que acontece, digo que não aguento mais, que ele não tem mais jeito e que vou me mandar. Mas não resisto quando ele chega perto de mim, beija minha nuca, escorrega os dedos macios pelas minhas costas e fala baixinho no meu ouvido: Me perdoa, Nêga, te juro que esta vez foi a última. Não me deixa, minha deusa; a gente não vai conseguir viver um sem o outro.

E eu acabo ficando. Não pela bela cara dele, não. O Chico é baixinho, esmirrado e até seria feio, não fosse o sorriso. Ah, o sorriso do meu mulato! Começa no brilho amoroso dos olhos e se espalha por todo o rosto. Anda sempre bem vestido, o cabelo preto esticado com gel, uma mecha caída na testa. E só usa sapato bom. É muito carinhoso: me trata como uma rainha. Nunca gritou comigo, nunca levantou um dedo para mim. E fala tão bonito que ninguém diz que ele não tem estudo. O Chico toca violão com mãos de seda, do mesmo jeito que toca meu corpo. E que voz, meu Deus! Quando ele canta a música do Lupicínio, aquela que diz vou buscar água na fonte, lavar os teus pés, perfumar e beijar, amor – olhando para mim como se eu fosse a única pessoa no bar do Maneco, lá na Cidade Baixa -, eu sei que nunca mais vou amar outro homem.

O Chico é eletricista de mão cheia, mas é muito vadio e gastador. Trabalho grande não pega: só bicos. Quando a grana acaba e ele não consegue trabalho, bate carteiras (eu já disse que o Chico tem mãos de seda). Tudo o que eu mais quero neste mundo é que ele largue de roubar. Nem precisa trabalhar muito: eu ganho bem com minhas faxinas, garanto as nossas despesas e até as roupas bonitas dele.


Mas, naquela noite, ele não me abraçou. Sentou ao meu lado na cama e falou, sem me olhar:

- Eu não queria aquilo, Nêga, te juro. Quando puxei a carteira do bolso do velho, ele se deu conta e gritou. Estava escuro, e eu fiquei com medo de que alguém ouvisse. Tapei a boca dele e ele começou a se debater. De repente, afrouxou o corpo e caiu. Sacudi mas não adiantou: ele tinha parado de respirar.

- Chico! Pelo amor de Deus! Tu matou o homem? - gritei assustada.

- Não sei o que aconteceu, não sei mesmo – disse ele, levantando a cabeça. Acho que ele teve um ataque do coração. Do susto, sei lá... - Chico cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar.

Eu estava muda; queria falar, minha voz não saía.

Então, ele chegou perto de mim e me abraçou. Não como um homem abraça uma mulher; mas como uma criança, com medo, procura o colo da mãe. Deitou a cabeça no meu ombro e falou:

- Nêga, me perdoa. Eu tinha te prometido parar. Mas teu aniversário está chegando e eu precisava de grana pra te comprar um presente legal. Jurei para mim mesmo que seria a última vez. Ia ser mesmo, te juro!

Abracei meu Chico com força. Sei que tudo aconteceu como ele disse. Sei, também, que ele não escondeu nada de mim porque tem certeza de que pode contar sempre comigo. E nós dois sabemos que eu nunca vou deixar dele, não importa o que ele faça.

Refúgio

Simone Bauer

Descobri recentemente que, entre as personalidades que jamais existiram, a que ocupa o primeiro lugar é o “homem de Marlboro”. Lembra? Era aquela figura máscula, cavalgando solitária por entre os campos e montanhas do meio-oeste americano, personagem da campanha do cigarro, e que transmitia aquela sensação de que se fumássemos a mesma marca poderíamos desfrutar um pouco daquela vida de aventura e em contato com a natureza. Aliás, as campanhas publicitárias de cigarrros sempre traduziram o anseio humano pela vida ao ar livre, pela aventura, daí o imenso sucesso que alcançaram. Quem não recorda os esportes radicais por água, ar ou terra, invocadas nos anúncios de Hollywood (“ao sucesso”) ou LM (“te encontro na 66”)? Ou aqueles locados em montanhas nevadas, alpinistas e esquiadores que faziam merecida pausa para dar umas tragadas e ganhar fôlego? Mais longinquamente, o próprio Gerson – atleta tricampeão de 70 – gostava - em paralelo infeliz com a linguagem futebolística - de “levar vantagem”, referindo-se ao custo/benefício do LS que anunciava mas que acabou se tornando símbolo do que há de pior no brasileiro, forjando-se a famosa “Lei de Gerson”. Triste sina do ex-atleta: vender um produto que em tudo se opõe aos benefícios preconizados pelo esporte e, de quebra, tornar-se o emblema do famoso “jeitinho brasileiro”. E olha que, nos idos dos anos setenta, fumar ainda não fazia mal.

No colégio, no ensino médio, a professora de ciências, com seu vestido de crochê, ficava no fundo da sala, pitando.

Na faculdade – que felicidade – o cigarro era permitido na sala de aula, não só para os professores mas – coisa inacreditável - para os próprios alunos. Era aquela fumaceira na sala, nos corredores, no saguão... E ninguém reclamava!

Varar noites estudando sem a companhia de uma carteira de Marlboro, Hollywood ou LM era inconcebível. Inconcebível também era passar a noite na festa – qualquer festa onde houvesse bebida alcóolica – sem voltar para casa e precisar lavar roupa e cabelo no dia seguinte por conta da morrinha que neles se impregnava.

No restaurante se fumava, no teatro se fumava, acho que até no cinema se fumava...

Tempos depois, já trabalhando, existiam as salas dos fumantes e dos não-fumantes, pois, nessa época, já existiam reclamações dos colegas não adeptos.

Difícil mesmo foi quando todos passaram a compartilhar um único recinto...

O politicamente correto escanteou os fumantes inicialmente para os “fumódromos” e, depois, sem qualquer cerimônia, para a rua mesmo. Passamos a protagonizar, de uma forma particular e totalmente século XXI, nosso próprio comercial de cigarros: só em ambientes externos, porém sem glamour. Ouvi dizer que estão pensando em proibir o fumo ao ar livre – parece que já existe legislação nesse sentido nos EUA e no Japão (ou seria na China?), onde os fumantes devem se apertar em cabines, parecidas com banheiros químicos, único lugar público onde lhes é permitido desfrutar do prazer proibido de um cigarrinho.

De qualquer modo, acho que, mesmo que proibam fumar na calçada, não vão nos encontrar aqui no alto.

Me consegue fogo?

João Ninguém

Juciane Speck

João sai de casa às seis. Pão, manteiga e café preto na barriga. João trabalha em obra. É mais um entre outros tantos pedreiros na metrópole que se agiganta. João Ninguém.

No metrô, o obreiro espremido disputa lugar com trabalhadores, que parecem multiplicar-se a cada parada. “Graças a Deus”, é sua vez de abandonar o barco. João segue em direção à obra. O gigante de ferro cresce à sua frente a cada passo. Esqueleto de torre que não é torre, mas é tão alto como se torre fosse.

João, naquele dia, estranhou o movimento ao redor do arranha-céu, movimento de gente famosa, gente arrumada e bonita. Era o moço fotógrafo, que brincava com sua máquina em frente àquela bagunça empoeirada. Cimento e tijolos viraram modelos, não só o prédio, mas seus colegas também. Macacões sujos e caras pretas, assim eles sorriam pra lente. João foi artista naquele dia, sentado entre seus amigos, brincava de ser anjo. Eram os donos da obra e, como bailarinos, nela dançavam com sabedoria de mestres. Tudo se podia, diante do homem mágico, que transformava cada movimento, cada sorriso em um pedacinho de eternidade.

No final do dia, o fotógrafo foi embora, levou consigo toda a alegria, todo o sonho, toda a coragem daqueles artistas desconhecidos. A imagem de João e dos outros correu o mundo. A foto inaugurou uma carreira de sucesso. Muitos prêmios e ansiosas teorias sobre aqueles anjos do céu, que sentados suspensos pareciam ignorar o mundinho de formiga, que seguia lá embaixo.

João acorda às seis. Pão, manteiga e café preto na barriga. João Ninguém.

Desconstrução

Rafael Zenato

Já era tarde quando encontrou Chico. Quieto, retraído, numa mesa de bar. Papel e caneta na mão.

- Vem cá, você não é o cantor, aquele?

Chico bebia uma dose de uísque num copo improvisado, daqueles de boteco. Levantou os olhos de curiosidade.

- Você é o cantor, sim. Olha bem pra mim. Aquele do olho azul, como é mesmo o nome?

Chico esboçava um sorriso, se divertindo com a dúvida do desconhecido. Seu uísque não tinha gelo. Nem uma pedrinha sequer.

- Caetano! É Caetano! Não, espera. Caetano é aquele outro, o baiano.

Os olhos azuis eram encarados com atenção pelo homem.

- Chico... Chico Buarque! Rá! Eu sabia! Muito prazer - e estendeu a mão.

Chico bebeu o último gole do seu uísque. Cumprimentou o homem.

- Muito prazer. E você, quem é?

- Ah, eu não sou ninguém, não. Sou um desconhecido. Tenho a minha família, meus filhos, essas coisas. Meu emprego, graças a Deus. Trabalho no ramo de construção, sabe? Essa casa aí do outro lado da rua, tá vendo? Fui eu que ergui. Quer dizer, não tá pronta ainda. Mas a gente tá erguendo, eu e os colegas aí.

- Bacana, bacana mesmo - respondeu Chico.

- Olha, desculpa eu me meter assim... mas o que o senhor tava escrevendo aí? É letra de música? - perguntou o desconhecido.

- É, é uma letra, sim. Uma canção nova que eu tô trabalhando.

- Sobre o que é? - perguntou o homem, curioso.

- É sobre você - respondeu Chico.

O desconhecido ri.

- Ah, você é um brincalhão, Chico. Não é à toa que é artista.

Chico rabisca mais um verso sobre o papel. O desconhecido estende a mão mais uma vez.

- Não quero atrapalhar, não, viu? Vou deixar você fazer a sua música. Foi um prazer.

Enquanto o pedreiro seguia em direção à rua, Chico murmurava, como se falasse com a folha de papel.

- Toma cuidado ao atravessar a rua, hein. Vê se não vai morrer aí na contramão.