Comentário sobre "O que será?", de Chico Buarque

Suzana Maria Pessoa Soares

Chico Buarque produziu, durante sua longa e prolífica carreira, inúmeras canções com letras belíssimas, cuja literariedade (qualidade literária) permitiu que figurassem e fossem tomadas como exemplos em cursos de literatura, desde aqueles do currículo escolar dos anos 70, quando eu cursava o segundo grau, até oficinas de escrita criativa online como esta que pratico agora, no ano de 2012.

Embora muitas das letras apresentem uma narrativa, como Construção que narra o episódio de um trabalhador da construção civil que vai trabalhar num sábado e morre ao cair das alturas, ou Atrás da Porta, Olhos nos Olhos, Gota D’água, Trocando em Miúdos e Eu te Amo, que expõem o fim de um relacionamento e tornaram-se a trilha sonora para nossos desacertos amorosos ao longo dos anos, O Que Será? não conta uma história, mas propõe um jogo adivinhatório, na forma banal das brincadeiras infantis, para a questão-tema, ainda mais banal, que é, foi e sempre será o grande filão da produção de canções, poesias, contos e romances.

A brincadeira da adivinhação se dá mediante o fornecimento de dicas, neste caso de uma sintomatologia física, emocional e moral que são expostas com comparações e negações. Neste processo são utilizadas figuras de linguagem tais como paronomásia (O que não tem remédio, nem nunca terá/O que não tem receita), polissíndeto (repetição do conectivo “e” e “nem”) e anáfora (“que” e “o que”), na forma, e antítese (O que não tem descanso, nem nunca terá/O que não tem cansaço, nem nunca terá) para enfatizar a dificuldade que é definir esse algo que, fazer o quê, né?, desacata a gente.

Ao construir uma dificuldade para aquilo que é banalmente conhecido de todos, Chico lança mão do recurso da ironia. Ao não mencionar o termo, a palavra ou o conceito, universalmente aceito, daquilo que está tratando, ele o retira da vulgaridade e o revitaliza, mostrando, numa elipse que perfaz o texto de alto a baixo, que aquilo que ele não quer nomear é sempre novo a cada vez que acontece.

A Vitória

Natalia Oliveira

O dia amanhece triste com o céu nublado, não é possível nem ouvir as folhas das árvores balançando ao vento. A cidade está em luto.

Vitória tenta se esconder entre os destroços das casas e dos corpos caídos ao chão. Com os olhos arregalados, observa ao redor, vê pessoas correndo à procura de abrigo e pais carregando seus filhos mortos à procura de um milagre. Um choro chama sua atenção, ainda abaixada, estica o pescoço avistando uma mãe com uma criança no colo.

Surge um ruído de motor ao final da rua. Ao olhar em direção ao som, avista pessoas correndo à procura de abrigo. O ruído aumenta e logo surgem centenas de tanques de guerra.

Apavorada, se encolhe mais ainda atrás dos destroços e com muito esforço tenta controlar a respiração ofegante. A injustiça em ver homens matando por uma causa desconhecida faz com que chute a terra que sobe em forma de fumaça. Agora sem saída, pensa nos dois homens que começaram tudo isso e que devem estar em suas poltronas rindo.

Vitória se ergue, corre em direção aos tanques e se vê parada diante de armas de fogo com as pernas trêmulas estendendo um pedido de paz. Os tanques param, ela ouve um comando e os motores são desligados.

Um sentimento de esperança invade seu coração, um ato de coragem ou de revolta fez com que todos refletissem por pelo menos alguns instantes.

Virando o jogo

Eleni Nizu

Lua nova, inverno, garoa. O céu, um breu. O desgraçado, como sempre, no bar. Tantas vezes desejei que ele se metesse numa briga e levasse a pior. Mas não, isso nunca aconteceu. Já passa da meia-noite. O ponto de ônibus me serve de abrigo e esconderijo. Sinto uma espécie de dormência – nem o frio nem a chuva vão me fazer mudar de ideia. E lá vem ele, finalmente. Sei bem aonde ele pensa que vai. Não dessa vez, não mais, nunca mais. Saio da toca. Ele para, olha e demora a reconhecer a figura encapotada que segue em sua direção. Ao se dar conta de que sou eu, começa a enxurrada de insultos, me xinga de tudo quanto é nome, grita, gesticula, esbraveja, ameaça. Mantenho certa distância. Ele nem se importa com o homem que passa, apressado, assistindo a tudo. Eu, mãos nos bolsos do casaco, empunho minha alforria. Agindo com a naturalidade de quem não tem opção, espero o estranho se afastar alguns passos, saco a arma e disparo duas vezes contra o meu alvo.

***

Lá vou eu, mais uma vez atrasado pro trabalho. Essa bosta de ônibus tinha de quebrar logo hoje? Trabalhar à noite tem lá suas desvantagens, mas o adicional noturno acaba compensando. E eu preciso muito dessa grana. No inverno é pior – até os ossos doem de tanto frio. As ruas sombrias e o chuvisco insistente me fazem pensar se não teria sido melhor gastar mais uns trocados e pegar um lotação. Bom, agora é tarde – apenas três quadras me separam de uma caneca de café quente e uma jornada de seis longas horas madrugada adentro. Mas o que são aqueles dois ali? Parece que estão brigando. Xi, o cara está nervoso – dá pra ver que bebeu além da conta. Enquanto ele berra, o outro, de casaco e gorro escuros, apenas ouve, imóvel. Faz bem – discutir com bêbado é perda de tempo. A noite é tão densa, que não consigo ver os rostos. Ora, eles, que são brancos, que se entendam! Aperto o passo. Uma quadra para o café. O que foi isso? Um tiro? Mais um! Corro, antes que sobre pra mim.

***

Envolta num casaco preto, os cabelos encobertos pela boina de feltro, ela narra o que acabou de acontecer. No rosto – que é o que se pode ver –, o roxo de uma violência recente. Não há lágrima nos olhos inchados, tampouco emoção na voz rarefeita. Coloca sobre a mesa um 38 cano curto e diz que simplesmente não teve escolha. Deveriam lembrar-se dela – afinal, não foram poucas as vezes que ali estivera em busca de ajuda. Mas de nada adiantou – sabe como é, "a gente está assim de coisa mais importante pra resolver". O agente recém-nomeado parece ser o único a prestar atenção ao depoimento lacônico da homicida confessa: no corpo, cicatrizes; na alma, fraturas ainda expostas. “Você se arrepende?” – ele pergunta. "Sim" – responde ela –, "me arrependo por não ter mandado ele pro inferno há mais tempo”.

A possuída

Lucilene Garcia

Clarice ainda era bem pequena quando foi escolhida por nossa legião. Logo cedo, ela demonstrava abertura para nossa ação. Era uma menina difícil desde a infância, gostava mais de si mesma do que qualquer outra coisa e tinha uma tendência à perversão. No início, a família imaginava que eram apenas manhas de criança. Não deu muita atenção para o pequeno gato jogado contra a parede, sem dó; para as agulhas espetadas sorrateiramente na poltrona onde a vó adorava sentar-se; para os empurrões que levava a vizinha de mesma idade, quase sempre marcada por galos na cabeça e esfolados pelo corpo. Afinal, Clarice era mesmo endiabrada.

Os pais davam alguns castigos e uns tapinhas de dó, na esperança de corrigir a menina. Mas somos observadores vorazes e sabemos exatamente quando o medonho é alvo fácil para nós, demônios. Aos sete anos, fizemos uma pequena prova do que seria possível para Clarice e ela passou no teste com aproveitamento. Um dia, chegou uma visita inesperada à sua casa. Era uma prima da mãe, com um bebê de uns quatro meses, um menino lindo, pele branquinha como algodão, que chamava a atenção de todos e não menos a de Clarice. – Olha Clarice, que coisa mais fofinha! - insistia sua mãe, estimulando a sua já extrema curiosidade. Após o almoço, todos tomavam um cafezinho animado na cozinha. O bebê dormia tranquilo na cama dos pais da menina, a qual foi verificar pessoalmente a tal fofice do priminho. Ajoelhou-se ao lado da cama e ficou ali, a espreitar aquele bebê admirado indistintamente por todos, dormindo como um anjinho. – Será que ele estaria sonhando? Bebês sonham? Eles têm pesadelos? Alguns minutos depois, ali na confortável reunião familiar, ouviu-se um grito seguido do choro do bebê. Todos acorreram ao quarto, onde a criança soluçava de dor com o pequeno braço vermelho de sangue. Diante de olhos incrédulos e assustados, Clarice levantou-se por trás da cama, dentinhos afiados, boca suja de sangue, confirmando: – Sim, mãe, é bem fofinho mesmo. Indignados, os parentes foram embora com uma recomendação: – É preciso benzer esta menina.

É divertido ver como os seres humanos acreditam na força da arruda, da espada de São Jorge, do alecrim e do alho. Quando escolhemos aquele que será possuído, pouca coisa pode ser feita e tem que ser bem feita. Clarice já estava sob o nosso domínio, pois fazia o mal e gostava de fazê-lo, parecia gerada por tal natureza, embora seja uma insensata forma de descrever um filho de Deus – o Poderoso! Este, porém, nos parece o maior erro da criação – o livre arbítrio. Os seres humanos não sabem escolher. E a menina crescia, era filha única, provocando tristeza e constrangimentos aos pais. Na escola, as maldades da aluna problema já eram do conhecimento de todos, difíceis de explicar. A diretora não queria saber de chamá-la para advertência. Benzia-se só de pensar na última vez que isto aconteceu por causa de um ritual sanguinário que a menina resolveu fazer com os ratos de laboratório do colégio.

E cada vez mais ficava isolada dos outros e mais próxima de nós. Clarice já quase nos enxergava, sentia nosso comando, mas não tinha noção do que seríamos. Era preciso um ritual de assimilação. Quase próximo de completar seus 13 anos, a menina estava em vias do aparecimento da menarca. Em um dia comum, sentiu uma indisposição tomando conta de seu ser que a perturbou completamente; estava agitada, impaciente, não podia olhar para ninguém que sentia náuseas e vontade de vomitar. Em uma ida ao banheiro, deparou-se com aquela mancha de sangue em sua calcinha. Estava atormentada, quando então, pela primeira vez, encontrou meus olhos, que não tinham sensações de conforto e apenas invocavam: – Mutilação! Mutilação!

De volta ao seu quarto, Clarice, desesperada, procurava por um objeto... Estava ali, bem próximo, um pequeno espelho das ainda existentes bonecas. Jogou-o com força na parede e dos cacos foi-se contorcendo de dor, diante de nossa satisfação, marcando cada pedaço da sua pele. Nem gemia, era um ritual de dor e de silêncio. Quando a mãe, depois de estranhar sua ausência, chegou ao quarto, quase desmaiou de terror ao ver a filha ali, largada, ensanguentada, com os olhos fixos nos meus que só ela enxergava. Sob a orientação dos vizinhos, foi levada ao hospital psiquiátrico, onde a doparam e nós a deixamos assim. Aquele lugar por si só já era suficientemente atordoante para perdermos nosso tempo por ali.

Controlada a crise, Clarice voltou para a casa e já sabia que era nossa, não tinha mais retorno. Mas nós não temos tanta vaidade, como imaginam, a ponto de querermos aparecer, como se fosse um festival de teatro. Nossa vítima fica dominada pelo caráter de seu próprio estigma. As poucas vezes que havíamos nos manifestado tinham sido suficientes para isolar aquela criatura que foi crescendo e amadurecendo, ora classificada como louca ora como possessa. Não faltavam orações dos amigos da família e dos parentes, mas de longe, pois ninguém queria proximidade com aquele ser. Já corriam mais lendas do que histórias verdadeiras de nossa vítima. Foi quando a mãe, com aquele execrável sentimento maternal, resolveu pedir ajuda à Igreja. Sentia que sua filha não seria curada por benzedeiras ou pelos médicos de loucos, necessitava de algo mais.

Procurou, então, o bispo José, que há anos teria autorizado certo Padre Júlio a praticar o exorcismo, cerimônia para livrar as pessoas dos espíritos maus. Naquela época, era um padre pujante que servia bem a este propósito. Mas os anos foram passando e, assim como a Igreja, o padre exorcista estava em xeque, pois já havia titubeado em várias sessões de exorcismo. Em um inquérito instaurado numa determinada ocasião, o bispo já havia questionado veemente – “Mas me diga, por que não foi possível expulsar o anjo caído daquela criatura? A oração não foi eficaz? Ou faltou determinação do sacerdote?”. O padre havia reconhecido sua hesitação na incumbência, como se não tivesse plena certeza do que deveria fazer naquele momento. Mas se conteve nos seus comentários, embora às vezes chegasse a pensar que poderia ter sido um demônio muito forte. Mesmo não entendendo no seu íntimo, o bispo considerava se tratar de um pequeno lapso do Padre Júlio, que já tinha expulsado muitos demônios no passado. Por isto resolveu aproveitar o caso de Clarice e dar uma nova oportunidade ao exorcista.

Cabisbaixo, o Padre Júlio chegou e cumprimentou humildemente o bispo, na reverência de costume. Para surpresa do padre, o bispo explicou que lhe daria um novo embate com o demônio. – Está na hora de colocar fora duas dúvidas e hesitações, Padre Júlio. A vítima, mulher de nome Clarice, parece estar apenas atormentada, mal comum das mulheres, mas não é de terapia ou encorajamento que ela precisa. O Bispo vinha de longa experiência, sabia que se tratava de nosso poderio sobre a criatura, porém imaginava que o exorcismo bem feito poderia tirar Clarice de nosso domínio e restabelecê-la para o mundo da misericórdia. O bispo tinha consciência dos novos tempos, de pouca fé e relativismo, que abatiam a Igreja, mas acreditava que o Padre Júlio, tendo outra oportunidade, poderia ter seu triunfo sobre nossa maldição.

No entanto, a fraqueza dos seres humanos facilita muito o nosso trabalho. Nós, demônios, não precisamos da crença das pessoas. A simples condição da mente humana é suficiente para colocar-nos no controle da situação. Assim foi com Clarice, mal amada, autoestima em baixa, um ser que já não pensava mais em si. Foi muito fácil tomá-la em possessão. Quando a família se deu conta de que algo acontecia, nossa história já vinha de longa data. Era assustador aos seus próximos vê-la se mutilando o tempo todo, até que a mãe resolveu chamar o tal padre.

Mais por motivação do próprio bispo, não demorou para que o Padre Júlio sentenciasse que Clarice estava em um estado de possessão demoníaca e iniciasse todo o ritual autorizado para expulsar o espírito maligno de seu corpo. Mas aí é que reside o problema. Eu não estava no seu corpo, já estava na sua mente e ela me via de igual para igual. Rezas e esconjuros não conseguiam trazê-la de volta. Clarice gesticulava muito e quando olhava para o nada, via os meus olhos fixos nos dela, parecia esperar que eu desse a ordem final. Chorava, uivava às vezes, como um cão sem dono. O padre e seu ajudante tentaram amarrá-la, mas sua força era terrível. Eu tinha o poder impassível da situação.

Por um segundo, como ele ainda hesitava sobre o que havia ali, permiti que o padre percebesse minha sombra no escuro do quarto, próxima da janela do sexto andar. Foi aí que ele se deu conta de que naquela noite já alta, o perigo era grande. Quando decidiu pegar a cruz, desviando o olhar de Clarice, eu a fitei, a dominei e ordenei. Apenas dois passos atrás foram suficientes para Clarice se colocar diante da janela e antes que o padre tivesse tempo de invocar a cruz, diante da manifestação da minha força demoníaca, ela lhe roubou o precioso amuleto, com o qual lhe penetrou o olho e arrastou o padre consigo janela abaixo. Restou somente o barulho do impacto dos seus corpos no chão. Calaram-se afinal o martírio de Clarice e a hesitação do padre.

Eu agora já vou longe, em busca de outro ser em desatino.