Pelos olhos de Marta

Érika Gentile


- Minha mãe sempre me dizia que tinha que cortar o frango em vinte e seis pedaços. Comecei a cortar frango com sete anos, o dia que eu errava o corte, levava uma surra de cinta, e depois ficava na salmoura até a hora de ir ao trabalho. Eu trabalhava de ajudante na casa do meu tio, que era rico. Eu tinha que ir almoçada, chegava depois da uma da tarde e ficava esperando na calçada. A tia abria a porta para mim. Eu ficava sentindo o cheiro do bife na chapa ali na calçada. Quase morria de fome e vontade, mas quando eu entrava para arrumar a cozinha, nunca tinha uma sobra para eu provar. Até hoje, quando sinto cheiro de bife na chapa é como se minha barriga ganhasse vida, para mim este é o cheiro da vontade.

- Por que, vinte e seis pedaços? Perguntei um pouco nervosa, para aquela mulher sentada à minha frente e que falava tão à vontade comigo.

- É que erámos treze, eu, meus cinco irmãos mais novos, minha mãe, meu pai e os cinco peões que ajudavam meu pai na lida.  Tinha que dar um pedaço para cada um para o almoço e outro para a janta.

Ela me disse que seu nome era Marta. Tinha o corpo franzino, e a pele queimada do sol. Usava roupas doadas que sambavam em volta de sua cintura magra; os cabelos amarrados numa trança deixavam a mostra um rosto que já fora bonito, mas que a vida castigara o suficiente para aparentar mais idade do que realmente tinha. Eu me peguei olhando demais para aquele rosto. De uma forma inconveniente, até. Reparei no contorno da boca, no nariz bem feito, no ângulo do maxilar, naqueles olhos verdes, quase indiscretos, pregados naquela face cansada. Imaginei aquela mulher tomando um banho de loja, cortando os cabelos, usando roupas adequadas ao seu tamanho. Era uma mulher bonita. Mais bonita que a maioria das mulheres que eu conhecia. Ela tinha uma elegância nata, e com certeza não fazia a menor ideia disso.

Seria improvável estar conversando com alguém como ela. Minha vida tinha sido em tudo diferente. Eu nunca soube o que é vontade, pois para mim a bandeja dos desejos sempre chegou preenchida logo no desjejum. Eu sempre tive escolhas, nasci podendo opinar. Eu era magra porque escolhi a dieta, bronzeada porque escolhi tomar sol, tinha roupas sambando ao redor da minha cintura porque escolhi aquele modelo. Eu escolhi tudo em minha vida, o que comer, aonde ir, como trabalhar, como morar. Sentada ali naquela sala defronte àquela mulher eu era exatamente sua imagem oposta. Alguém a quem o cheiro do bife na chapa não tinha qualquer significado.

A sala era pequena, apenas uma janela, na mesa de centro umas revistas velhas, com páginas arrancadas. Uma caixa de som antiga tocava músicas de uma rádio mal sintonizada. Havia duas poltronas e um sofá, ambos forrados de courvin que um dia talvez tenha sido bege, mas agora era encardido. Um off-white, pensei com ironia. O piso de ardósia estava manchado pelo excesso de cera, nas paredes brancas destacava-se uma folhinha da Seicho-no-ie anunciando a mensagem do dia: “Diante de uma determinação justa, nada é impossível”.

Marta estava me olhando fixamente, era como se ela também estudasse o meu rosto e tentasse adivinhar a minha história. Havia uma interrogação em seus olhos, mas ela nada me perguntou. Ao contrário, continuou falando:

- Minha mãe fez uma reunião com todo mundo no ano passado, ela queria pedir desculpas para todos nós porque ela acha que está chegando a hora de morrer e não quer ir embora sem o nosso perdão. Porque ela batia mesmo na gente. Mas eu disse para ela “A senhora só batia porque aprendeu apanhando, vai ver que até bateu menos do que apanhou. Ninguém de nós virou bandido, e eu não tenho nada que perdoar não.” Eu disse isso porque não quero que minha mãe carregue as culpas. Eu não tenho raiva da mãe, não, mas não consigo me esquecer das surras. Destas eu lembro todas.

Tentei manter um sorriso no rosto. Para mim era um exercício, eu me concentrava em cada palavra que ela dizia. Sua história ajudava a passar o tempo, me distraia dos barulhos externos, do telefone que tocava, das vozes das outras pessoas, do entra e sai de gente. Olhar para Marta era a minha salvação. Eu olhava para ela e não precisava me ver, olhar para Marta era não olhar para o vazio que havia em mim.

 - Eu tenho três filhos, ela continuou. O mais velho é lindo, o mais bonito de todos. O do meio era terrível, me deu muito trabalho, chegou a ser preso porque se meteu com drogas, mas depois que saiu foi para a igreja e se emendou. O mais novo é o mais inteligente. Não há o que fique quebrado perto dele. Ele tem a inteligência de entender os objetos, conserta tudo, tudo mesmo. E você? Tem filhos? – ela me perguntou sorrindo. Tinha um tom de voz manso, aveludado, tranquilo.

Acenei com a cabeça em negativa, meio constrangida. Eu não tinha filhos. Eu não tinha nenhuma história de sofrimento para contar. Tudo tinha dado certo até agora, eu era quase uma página em branco na frente daquela mulher tão densa, tão cheia de acontecimentos. Não fosse eu estar perto na hora do acidente, sequer estaria ali, naquela pequena sala, ouvindo as confidências de Marta. Mas eu vi tudo, e precisava contar o que vi, porque era a coisa certa a fazer.

-Bem se vê que você não é daqui destas paragens, que veio de longe, que está só passando. Não pense que eu sou fria, não. Também me impressionei muito com todo o ocorrido, mas é que com o tempo a gente se acostuma com tudo, vai vendo as coisas acontecerem bem na nossa fuça, e chega uma hora que nem se assusta mais. Não é que a gente não sente. A gente sente sim, só que recebe da vida como quem recebe uma bordoada, o corpo todo sacoleja, os joelhos tremem, daí a gente toca para frente, porque tem conta para pagar.

-Você viu tudo também? – perguntei.

- Vi tudinho, eu estava no portão, ia saindo para o meu trabalho. O menino saiu correndo atrás da bola, o carro não tinha como não pegar. Pegou.

- Coitada daquela mãe- eu disse, pesarosa.

- Moça, aquela mãe já enterrou outros filhos. Tem gente que vem no mundo só para Deus tirar o pouco que deu. Ela perdeu um filho viciado, o outro caiu da moto, esse aí atropelado. É sina dela passar por este sofrimento.

-E os seus filhos? Você disse que são três?

- São sim, três, muito lindos. Mas eles foram embora, estão morando longe, não aguentaram ficar perto de mim. Eles ainda são meus filhos, não importa o que aconteça, mas não querem mais viver comigo, nem querem que eu diga que sou a mãe. Ficaram muito bravos comigo, dizem que não são capazes de me desculpar. Ficaram revoltados mesmo.

- Por quê? – escapou-me dos lábios a pergunta curiosa.  Eu já não me preocupava mais em ser educada, a presença de Marta naquela sala era talvez o maior acontecimento da minha vida, ela tinha nas costas uma bagagem que eu jamais teria. Não era uma mulher queixosa. Enxergava a vida com o pragmatismo de um analista, me acalmava do susto do acidente recente, me distraía do calor, dos mosquitos, do barulho irritante do ventilador de teto que rodava lentamente. Marta agigantava-se diante de mim, e toda a minha vida parecia não ter a menor importância.

Ela então tirou a mão esquerda do bolso e eu percebi que faltavam as falanges de seus cinco dedos. Tentei desviar o olhar, mas ela não deixou. Levou a mão com as horrorosas cicatrizes bem pertinho do meu rosto, absorveu todo o meu desconforto, e relatou:

- Meus meninos não aguentaram o meu perdão. Quando a mãe chamou para eu perdoar, eu perdoei, mas os meninos não. É que um dia eu não dei conta de cortar o frango, eu estava distraída por causa da fome, e a mãe ficou bem brava. Ela gritou. Ela se descontrolou. Ela queria me mostrar que era possível picar as coisas bem miudinhas, e foi aí que cortou meus dedos em vinte e seis pedaços.

Chamaram-me então para que eu pudesse dar meu testemunho. O menino morto daquela manhã me levara até Marta, e pelos olhos de Marta eu soube que era urgente me apegar a algum caminho.

O menino e o tempo

Marcio Furrier

Talvez nenhuma imagem seja mais permanente em mim que a daquele velho…

Nove ou dez anos de idade, eu matava o tempo observando as pessoas por trás das grades de ferro da garagem da casa de minha avó. Área apertada, destinada ao fusquinha da minha tia, sempre vazia durante o dia, recoberta de cacos vermelhos de azulejo caprichosamente quebrados pelo meu avô, um a um, e juntados de maneira aleatória para compor um mosaico frio. Sobre o nicho do registro de água, eu, insuspeito do que me reservara a vida naquele dia.

Na tranquilidade da tarde, aquele era o meu espaço. Após a aula e o almoço, quando me cansava do ócio, timidamente olhava por entre o portão, à espreita das pessoas que desciam a longa rua de terra em direção ao outro lado do rio, ainda não canalizado. Olhava não, analisava, ria e me estranhava com a gente, sem dar-lhes a mesma chance de fazerem isso comigo. Aquele era meu cosmos, até onde minha experiência de menino podia alcançar.

Mas vamos ao fato. Não sei o quanto a imagem foi real e o quanto deixei que fosse retocada em meu inconsciente... Era uma tarde já com sol baixo, sinto o calor na face como se fosse agora. Meu espetáculo de periferia arrastava-se sem novidades, pessoas indo e vindo, algumas virando o rosto para o portão e me surpreendendo, ao que eu rapidamente me contraía em meu nicho e lhes negava o rosto. Tímido, indevassável como continuaria sendo por muito tempo. Talvez a moça da Avon ou do Yakult já tivessem passado, e eu já respondido que minha mãe não estava, nem estava a empregada (que nunca tivemos).

Lembro-me que meus olhos esquadrinharam aquela imagem depois da minha consciência. Súbito me notei congelado, sem atinar a razão. Dobrando a esquina de baixo, passando pela casa da Dona Sofia e atravessando a rua em minha direção, um velho, setenta anos, no mínimo. Terninho preto puído, bem justo de outros tempos de vacas ainda mais magras, camisa pretensamente branca de gola alta, ornada por uma gravatinha borboleta preta, sapatos maculados pela terra da rua e chapéu daqueles que não se usavam mais. Carregava uns dez porta-retratos de moldura espartana, mostrando uma foto preto-e-branco do Francisco Cuoco, naquela época já um ator veterano da Globo. Um movimento lento e vacilante. Andava como se pedisse licença pelo chão de terra batida. Confesso que aquela imagem caiu em mim como uma bomba. Pelo inusitado, pela força, pelo rompante da revelação. Improvável, mesmo aos olhos de um menino de 10 anos, acreditar que ele iria conseguir vender um porta-retrato daquele em uma rua pobre dos confins de São Paulo. Que razão louca ele teria para achar que tal iniciativa iria lhe prover sustento? Eu não tinha ainda lido Quixote, mas ali certamente reconheceria um.

A força dele eram seus olhos. Dignos, dignos, dignos. Os olhos castanhos se apertavam contra o sol e contra a face marcada, espreitando alguma alma para oferecer seu produto. Olhos sofridos; poder-se-ia dizer que todo o sofrimento do mundo estava lá, incontido, óbvio. Parecia que a cada passo se penitenciava de seu destino, mas não se abalava com as recusas, ou porque também desconfiava de seu absurdo, ou talvez porque só quisesse continuar caminhando pelas ruas.

Eu continuava congelado. E sim, ele tinha me visto e vinha agora me oferecer aquilo. Acho que nunca fui tomado de tanta compaixão. Ao mesmo tempo penava o coração, dava-me vontade de abrir o cadeado para abraçar aquela figura frágil. Queria talvez dizer a ele que tudo ia melhorar, talvez fazer aqueles olhos rirem uma vez que fosse. Tive também ímpetos de correr na carteira da minha mãe e pegar o que fosse necessário para comprar um porta-retrato do Francisco Cuoco. Tudo isso num segundo. Ele me olhou de maneira tímida, as mãos surradas pelo tempo me fizeram um leve movimento de oferta. Eu fitava aquele homem mas não o compreendia; estava assustado, triste e imobilizado. O máximo que consegui, juntando minhas forças, como que ele ainda me olhasse, foi um balançar negativo de cabeça. Então aqueles olhos se voltaram à rua, e nos despedimos para sempre. Sabia que não voltaria a vê-lo, que não teria mais chance de comprar seu produto, nem lhe poderia dar alento. Vendo-o já pelas costas, o magro terninho preto se afastando e ficando menor, me despedi dele em silêncio.

Só hoje faço justiça àquele velhinho ambulante: naquele exato momento deixei de ser menino. Pela primeira vez tinha entendido o poder do tempo. Tempo irreversível. A força daquela imagem me mostrou pela primeira vez a existência da velhice sem retoques, sem cortes. E que a vida não era necessariamente justa, nem nunca nos prometera isso.

Essa imagem ficou comigo e vivia me pedindo para sair, para ser compartilhada. Se não comprei o retrato nem lhe dei apoio, presto-lhe agora a mais sincera e pura das minhas homenagens. Imagino que outros profetas, velhinhos disfarçados de homem-sanduíche, vendedores de loteria, engraxates, amoladores de faca, devem vagar por São Paulo, provocando sensações parecidas em novas gerações de meninos atrás de grades.