Um Conto Siciliano

Sergio Vinicius Ricciardi

O sol brilhava numa autêntica manhã siciliana de 1920. A brisa mediterrânica sacudia as árvores e arbustos do campo de caça mais ao norte de Palermo. Fragone carregara a sua espingarda e aguardava pacientemente que as perdizes , assim teria o almoço de domingo da família garantido. Vendeiro e cozinheiro por excelência, administrava a Cantina Surriento, que tinha pertencido aos seus pais e antes aos seus avós. Lá os frequentadores podiam saborear os mais autênticos pratos italianos e ainda levar as compras de verduras e frutas para a semana.

Fragone mandava em tudo no seu negócio, menos em sua esposa Laurina, também conhecida como Mamma Fragone, que mandava nele e em todo resto... O casal tinha no filho Luccio, oficial do Exército Italiano, sua alegria e orgulho. Tudo estava perfeito. Até aquela trágica manhã.

A Sicilia também era conhecida por ser o berço da máfia, uma organização criminosa que tem suas origens perdidas nas névoas do tempo. Cheia de rituais e com uma profunda ênfase nos laços de sangue, era comandada na ilha pela Família Tomasino. O chefe das famílias, também conhecido como “Don” (o padrinho), administrava os negócios ilícitos da ilha (bebidas, jogo, mulheres) juntamente com um subchefe – em geral seu familiar –, um capitão (capo) e um conselheiro (consigliero), figura que dava o aval às principais decisões.  Naquela manhã, Dom Tomasino, o chefe supremo dos negócios da ilha, também havia ido ao campo de caça.

Fragone observou as duas perdizes paradas e fez a mira. Quando foi disparar, teve um acesso de espirros e atirou a esmo. Mais além ouviram-se gritos. Quando Fragone foi verificar o que tinha se passado, deu de cara com um quadro pavoroso: Don Tomasino, o chefão da Sicilia, atingido no peito, jazia caído ao chão. A munição de caça era fraca, fez um estrago mais superficial, mas Tomasino, ao ver o ferimento e o sangue, enfartou e morreu de susto. Seus acompanhantes avisaram o pobre vendeiro para se preparar para o troco, ou seja, antes daquele dia terminar ele estaria morto.

O vendeiro chegou em casa branco como um lençol, reuniu a família, os agregados e contou o caso. O filho Luccio estava servindo na Itália. As cozinheiras e funcionárias da cantina desataram a chorar e falar alto e ao mesmo tempo, numa algaravia em que não se entendia nada. Sua sogra, Nona Andolini, queria sair imediatamente para chamar o alfaiate e o agente funerário para tirarem suas medidas. Foi quando Mamma Fragone, tranquila e impassível, decidiu tomar as rédeas do caso. Já que Deus havia lhe dado um limão, por que não fazer dele uma limonada? Ao final daquele dia, seu marido Fragone não só estaria vivo, mas tiraria o máximo proveito da situação.

Laurina e a família aguardaram, pacientes, a visita do assassino-chefe, o capo da família Tomasino. Lucca Brasa era conhecido como “o terror da Sicília” por sua folha corrida de crimes. Fragone deixara-se afundar, suado e tremendo, na cadeira de espaldar alto da sala. Só Laurina parecia inabalável. Foi quando Lucca chegou, mais pontual que a própria morte, às seis badaladas noturnas dos sinos da Igreja. À tiracolo, numa caixa de violino, trazia “La Cantante”, como era conhecida sua metralhadora de estimação. Fragone era a própria imagem do desespero. Laurina recebeu Lucca e lhe serviu um café, como se o motivo da visita fosse uma amabilidade entre amigos. Antes que ele executasse a missão que lhe haviam designado, pediu para ter uma breve conversa com ele. Lucca era um assassino, mas nunca um bruto. Não tinha porque não atender um pedido de uma futura viúva. Foram a um aposento mais afastado:

- Lucca, quero saber em primeiro lugar como está tua bambina, Isa.

- Uma tristeza, Mamma Fragone... Três meses. O desgraçado fugiu para a América. Não pude pôr minhas mãos nele.

- O meu Luccio ainda gosta dela. Ele vem pra casa no início do mês. Quero te fazer uma proposta...

- Proposta?

- Eco. Luccio é um oficial do Exército Italiano, tem uma bela carreira pela frente. Ele gostaria muito de tomar Isa como esposa e assumir esse filho. Isso poderia unir nossas famílias.

- Não sei o que dizer... Isso salvaria a reputação de minha filha, lhe daria um futuro.

Sim Lucca, é isso que nós, eu e tu, queremos.

- E o que eu poderia dar em troca deste gesto tão grandioso, Mamma?

- Quero que poupes a vida de meu esposo. E mais: quero que mates os subchefes e capos das outras famílias. Quero que sejamos a “Família Fragone”.

Fez-se um silêncio. O assassino não disse nem que sim, nem que não. Após um tempo, Mamma Fragone levou Lucca até a porta. Ele olhou Fragone afundado na cadeira e fez um gesto com o indicador, passando pelo pescoço. O vendeiro pareceu encolher. Olhou para Laurina e piscou o olho. Ela o acompanhou até o portão, confabulavam. Quando voltou, Mamma disse diante de todos:

- Vamos chamar o alfaiate e o funerário. Precisamos preparar o Fragone para um outro tipo de vida.

Às nove horas da noite, tocou novamente o sino. No salão anexo à Cantina Surriento, Mamma Fragone, Nona Andolini e alguns agregados e vizinhos velavam Fragone, que estava impecável num terno escuro feito às pressas pelo alfaiate Vincenzo, especialmente para a ocasião. Quem olhasse para o morto, dizia que simplesmente dormia. A família ocupava um lado da improvisada capela mortuária. Do outro lado, chegando um a um e recebidos por Lucca Brasa, estavam os subchefes e capos das outras cinco famílias da ilha, comparecendo para certificarem-se de que a justiça por Don Tomasino tinha sido levada a cabo. Quando todos cumprimentaram a viúva e sentaram em seus lugares, de repente o morto pulou de seu caixão em direção à família e Lucca sacou de sua metralhadora. Antes que entendessem o que estava acontecendo, as principais figuras da máfia siciliana foram crivadas de balas e jaziam mortas diante dos Fragone. Agora, para que o plano de Mamma Fragone fosse coroado de êxito, faltava somente um mero acordo diplomático com os familiares daqueles ilustres defuntos.

Sem seus subchefes e capos, as famílias depostas, representadas por idosos, viúvas e enlutados herdeiros, não tinham mais possibilidade de vingança ou retaliação. Só restava reconhecerem a sucessão dos Fragone e de Lucca Brasa no poder. O casamento dos felizes jovens Luccio e Isa foi um deslumbre, e emocionou suas famílias e conhecidos. Faltava agora o reconhecimento formal do novo chefe da máfia, o novo Don... Lucca. Acumularia as funções de subchefe e capo, e Mama Fragone assumiria a função de conselheira (una belìssima consiglierina), tomando as decisões mais difíceis e estratégicas.

As cinco famílias chegaram à Cantina Surriento, como numa procissão, uma após a outra. Fragone, ao lado de duas panelas em que se preparava um molho de tomates e um nhoque ao sugo, sentava-se para que os visitantes beijassem sua mão e o saudassem como o novo “Don”, levantando os olhos a ele e dizendo: “Don Fragone”, ao que lhes respondia com dois beijos no rosto e um caloroso abraço. Ao seu lado, Mamma Fragone controlava o movimento e saudava os que ali chegavam. Ela seria a primeira mulher siciliana a comandar a máfia, um marido e uma cantina...

O comissário Siqueira

Enio Albuquerque de Oliveira


Conheci o Siqueira nos anos setenta.

Eu havia concluído com brilhantismo o curso na Academia e recebera, junto com o diploma, minha nomeação para o primeiro degrau da carreira: inspetor de polícia. Eufórico com meu desempenho, juntei à portaria de nomeação o meu currículo escolar para apresentá-lo como credencial. Tinha certeza que as notas avaliadoras e os conceitos de excelência emitidos por meus mestres me garantiriam um lugar proeminente em qualquer delegacia.

Antes de me apresentar ao cargo tratei de me vestir cuidadosamente.

Escolhi um traje escuro, discreto, apropriado para um detetive, mesmo em início de carreira. Pretendia, desde o início, causar impacto.

Fui designado para servir na 19ª.

Logo ao me apresentar minhas pretensões sofreram um primeiro baque: O doutor Meira, bacharel titular, mostrou-se tão ocupado que não prestou atenção em meu nome, coisa que alardeei, logo ao entrar em seu gabinete. Também não ligou para minhas qualificações. Na verdade e para minha desdita, nem sequer olhou para o currículo que eu havia elaborado com tanto capricho e no qual depositava tanta fé.

Limitou-se a devolver-me os documentos com a ponta dos dedos como se fosse algo inoportuno a lhe atrapalhar o mister. Rapidamente voltou a atenção para uns papéis sobre sua mesa e despediu-me secamente sem mais levantar os olhos: — Apresente-se ao Siqueira.

Irritei-me.

Era muito pouco caso, muita indiferença. Como um delegado velho, meio vesgo, de óculos pendurados na ponta do nariz, não tomava conhecimento de minhas excelentes qualificações e despachava-me aos cuidados de um funcionário subalterno? Afinal de contas, eu tinha sido o primeiro de minha turma e, se não tinha alcançado a láurea culpe-se a dois ou três recalcados professores surrupiadores de notas que, por inveja ou despeito, evitaram minha consagração.

Eu esperava do titular da 19ª uma recepção mais calorosa, alguma coisa digna de um primeiro lugar.
Evidentemente, a despeito de minhas qualificações, ainda não chegara ao nível de um Holmes ou Poirot. Reconhecia, a contra gosto, que para completar minha bagagem profissional faltava a experiência. Mas esta, julgava eu, era fácil de obter; um ou dois meses de vivência na azáfama da delegacia preencheriam a lacuna.
Diplomaticamente escondi meu desconforto para com o doutor Meira. Não era ocasião adequada para manifestações de desagrado, ainda mais no primeiro dia de assunção ao cargo. Retirei-me de seu gabinete com um sorriso contrafeito e tratei de procurar o tal Siqueira que, soube mais tarde, era comissário, cargo apenas um degrau abaixo de delegado; um subchefe, portanto.

Não perguntei a ninguém quem era o Siqueira. Confiava na minha argúcia para identificá-lo. Na realidade, os indícios eram tão claros que prescindiam de raciocínio.

Bastou-me girar os olhos cuidadosamente pela sala apinhada de funcionários para achar o homem: se sentava em lugar meio isolado atrás de uma escrivaninha de tampo largo. Ao aproximar-me notei que mantinha as pernas distendidas e os pés apoiados num escabelo. A gravata tinha-a frouxa no colarinho. O casaco, atirado com desleixo no espaldar da cadeira, escondia parcialmente um 38 antiquado, daqueles de cano longo atualmente só vistos em museus.

Não precisei ler a placa sobre a mesa com seu nome e título. Seu isolamento e a atitude desleixada denunciou-o ao primeiro golpe de vista. Ficou claro para mim que só um preposto do Meira com autoridade delegada podia permitir-se atitude de tanta ociosidade. Tratava-se de um mandarim, sem dúvida, destes protegidos pela autoridade maior que dirigia, mas não trabalhava. Mandava, mas obedecia somente ao delegado.

Apresentei-me. Desta vez, prudente, evitei a grandiloqüência.

Seu corpo, recostado na cadeira giratória, não se moveu. Seus olhos passearam de lá para cá me esquadrinhando. Um palito de fósforo passeava ora para um lado ora para outro da boca quase escondida sob um basto bigode.

Não recolheu as pernas nem tirou os pés do banquinho.  

Um fio de baba escorreu entre seus lábios. Limpou-o com o dorso da mão. Foi o primeiro gesto daquele corpo lasso, movimento vagaroso como se muito lhe custasse qualquer ação.

É um babão, concluí em íntimo pensar.

 — Babão e preguiçoso — sopraram Poirot e Holmes em dueto ao meu ouvido.

Diferente do doutor Meira, leu meus documentos demorando-se no currículo.

Pareceu-me que deu certa importância para a excepcionalidade de minhas notas, para a láurea quase conquistada, mas não demonstrou admiração nem fez comentários.

Talvez o asno não soubesse o significado de láurea, daí sua aparente indiferença.

Classifiquei-o logo como um sobrevivente de uma geração arqueológica. Certamente ainda defendia as idéias de Lombroso e suas teorias anatômicas. Superado pelos anos, estava ali aplastado a espera da aposentadoria compulsória.

Por um instante pensei que ele tinha captado minha irreverência, mas foi só um instante. Um bom detetive jamais deixa perceber seus pensamentos.

Tirou o palito da boca.

Com a mesma mão que limpara a baba, apontou-me uma secretária próxima. Sua voz de barítono desafinado me mandou sentar e aguardar futuras determinações.

Esperar futuras determinações! Ora vejam só a desconsideração!

Obedeci a contragosto.

Deixou-me ali ficar até o fim do expediente a observar o esvoaçar das moscas.

Ninguém deu por mim. As horas escorreram e as pessoas que por ali labutavam sequer olhavam em minha direção.

Impacientei-me.

Tamborilei os dedos no tampo da mesa em ritmo raivoso: o que pensava aquele chefetezinho? Eu não chegara ali para observar moscas. Logo eu, um quase laureado, a personificação da ciência criminalística moderna, abandonado aos insetos!

Os dias que se seguiram não foram diferentes ao inicial: chegar, bater o ponto, dar bom-dia ao babão, sentar à secretária, tamborilar com os dedos o tampo da mesa, levantar à hora do cafezinho, tornar a sentar e observar o esvoaçar das moscas.

Onde os crimes hediondos? Os assaltos a bancos? Os furtos e roubos espetaculares e misteriosos a exigir o serviço de um cérebro privilegiado como o meu?

Siqueira, ao chegar, acenava de longe e nada dizia: gesto simples, mera observância de preceito educacional. Eu correspondia da mesma forma. Se ele pensava que eu iria me humilhar reinvidicando qualquer coisa, estava enganado; não iria pedir penico a chefinho ultrapassado.

Siqueira, pela manhã, não ficava muito tempo atrás de sua mesa. Agilizava ordens, convocava pessoal, sacudia boletins de ocorrência no alto da cabeça exigindo soluções. Até o cafezinho das dez horas ele dispensava saindo logo em diligências acompanhado por dois ou três colegas.

Eu seguia-o com os olhos expectantes sentindo-me propositalmente negligenciado. Quando seria chamado para sair com a equipe?

O tempo passava.

O chamado não vinha.

Me cozinhava em fogo lento — pensava sopitando ódio — Persegue-me pelos meus méritos, como fizeram aqueles ladrões de láurea..

Invejoso! Recalcado!

Antes não tivesse lhe mostrado meu currículo, antes não tivesse dado a perceber minha genialidade. Mas que fazer? O mal estava feito. Manda quem pode, obedece quem está por baixo...
 
Filho da puta esse Siqueira!

Observo-o à tarde. Como pode mudar tanto? Bate o ponto, atirar-se naquela cadeira, espicha as pernas, põe os pés no banquinho e deixa a vida escorrer chupando palito.

É o que dá ficar velho na função pública.

Relapso!

Pela manhã finge que trabalha, a tarde atira-se no ócio.
     
Só no terceiro dia de muito tédio e muito tamborilar no tampo da mesa me fez as tais determinações. Surpreendeu-me trazendo velhos processos, uns dez ou doze que atirou em minha mesa estrondosamente. Ordenou-me ler todos os calhamaços vindos do arquivo morto. De cada um deles eu devia fazer uma apreciação por escrito, principalmente dos casos com documentação mais alentada. Deu-me uma idosa Remington de teclas desgastadas que há muito dormitava no almoxarifado.

Eu, dedógrafo mais do que datilógrafo, passei a perder um tempo enorme batendo relatórios sobre casos solucionados e que há muito tinham perdido o interesse.

Da maioria redigi açodadamente minhas observações; queria terminar logo com o suplício. A alguns dediquei mais atenção.

Quando pensava ter esgotado o estoque, o Siqueira depositava diante de mim mais uma carrada de papel velho.

E assim passou-se quase um mês. Ou foi um mês inteiro?

Minha frustração aumentava e com ela meu ódio à figura do comissário — É filho de pai desconhecido — repetia para mim mesmo a cada nova pilha de processos — e a mãe foi dona de bordel.

Bastardo!

Diariamente pela manhã eu via o Siqueira sair com agentes mais antigos a resolver ilícitos. A mim deixava soterrado em velhas pastas ruminando frustrações: quando seria designado para investigar um caso? Quando acompanharia uma diligência?

Quando, finalmente, poderia demonstrar todos os meus conhecimentos, minha argúcia, minha excepcional habilidade?

Falou-me um escrivão, na pausa do cafezinho, que o comissário era pessoa conceituada, principalmente por sua aguda percepção das coisas.  Afirmou que o homem tinha faro desenvolvido pela experiência de muitos anos no ofício. Falou-me de sua intuição quase feminina para resolver crimes. Prescindia de ciência ou de sofisticados recursos tecnológicos: raciocínio era seu instrumento preferido. Fazia pouco caso dos colegas dados a cientifismos. Suas deduções apontavam culpados ou excluía inocentes acertando em quase cem por cento dos casos — apenas por lógica —  exclamou sem esconder sua admiração.

— Dizem até — confidenciou-me em voz baixa com tom de mistério — que o homem lê pensamentos. Ele sabe, antes de qualquer investigação, o que esconde um criminoso seja ele pé de chinelo ou estes de colarinho branco.

Sem dar a perceber ao meu colega meus verdadeiros sentimentos, enchi de loas o comissário. Eu não era bobo para dar motivos de intensificar meu ordálio expondo minha má querência. Mas graças às informações recebidas, tirei minha conclusão: Siqueira trabalhava com palpites, com intuições. Nada de microscópios, de datiloscopia, de testes de DNA. Bastavam-lhe os interrogatórios habilmente conduzidos para suas conclusões, a maioria de caráter metafísico. Em suma: tinha a sorte dos ganhadores de loteria, uma sorte que, por sua freqüência, desafiava as estatísticas. Não era de estranhar que invejasse minhas qualidades ressaltadas no currículo; elas ameaçavam-no. Não suportava sombras que pudessem escurecer seu prestígio. Tratava então de abafar meu brilho me exilando por detrás de uma mesa

Leitor de pensamento, ora vejam só que coisa estapafúrdia!

Soube da proximidade de sua aposentadoria por idade, quando voltava do primeiro caso que me designou. Depois de quatro semanas de confinamento em arquivos mortos aquele carcereiro havia me libertado. Finalmente eu iria demonstrar minhas qualidades que ninguém até então e graças ao Siqueira, tivera oportunidade de observar.

A ocorrência era corriqueira: agressão sofrida por uma mulher pelo marido alcoólatra. Prendi o viciado em flagrante sem necessitar de meus profundos conhecimentos de técnica investigatória.

Naquele mesmo dia resolvi outro caso: roubo de bicicleta, coisa de adolescentes que terminara em briga entre vizinhos — Por enquanto nada demais — pensei ao prestar contas de minha atividade ao comissário. Na ocasião ele sequer tirou o palito da boca, me olhou com um sorriso irônico e dispensou-me sem nada dizer.

Mais tarde ao confraternizar-me com os colegas inspetores, soube que 90% das ocorrências eram assim; pequenos e insignificantes conflitos no seio da comunidade.

Mas só após meses de atividade que me veio a cair a ficha: para o lufa-lufa diário da delegacia, mais valiam a leitura dos antigos inquéritos, factuais e pouco científicos, do que os volumosos tratados de criminologia nos quais eu tanto confiava.

Sem que me desse conta e a medida que a prática substituía a teoria, a raiva contra o Siqueira ia amainando.

No dia de sua aposentadoria houve uma festinha de adeus. Fui cumprimentar-lhe encabulado e já cheio de remorso. Mostrou-me um sorriso amigável e apertou-me a mão demoradamente. Juntou-me ao seu peito em inesperado abraço e disse ao pé de meu ouvido: — aprendeu?

E rindo ante meu espanto murmurou para que só eu ouvisse: — Filho da puta é tua mãe.

Envergonhado percebi: ou ele sempre soubera de meu pensamento ou era exatamente o que esperava de novatos.

Depois da festa perdi de vista o Siqueira. Nunca mais o vi. Dizem que morreu dois anos depois da aposentadoria: de infarto, dizem uns, de câncer, dizem outros.

Há, entretanto, os que indicam a solidão e o esquecimento como causa de seu passamento. De minha parte pergunto com um pouco de apreensão: não será a solidão e o esquecimento as coisas mais letais para os que se retiraram do fluxo da vida?

Com mais de trinta anos de serviço, agora comissário, sou eu quem recebe os jovens inspetores. Lembro então o melhor mestre que tive quando neófito da profissão. E sem medo de plágio repito impiedosamente sua lição: deixo os Poirot e os Holmes que aqui me chegam respirando o pó do arquivo morto por longos trinta dias.

O Bicho

Ana Beatriz Cabral


Pedro agitava-se no sono. A chuva continuava forte. Trovões ao longe se juntavam ao coro de vozes confusas. De repente, um estrondo. Levantou-se meio tonto. Desligou a TV e caminhava sonolento em direção ao quarto quando uma luz trêmula vinda da porta que levava à cozinha chamou sua atenção.

Levantou-se.

Com o único copo limpo na mão, abriu a porta da geladeira quase vazia para pegar a garrafa com água, quando a luz do eletrodoméstico projetou uma sombra disforme na parede. O susto o fez derrubar o copo. Virou-se com pavor, procurando um objeto qualquer para sua defesa, mas deteve-se quando viu, encolhido num canto da parede, um bicho molhado e escuro, que tremia. Já havia se virado em direção ao quarto, mas o olhar do estranho animal o seguia.

O animal, embora estivesse visivelmente assustado, não se movia, não tentava fugir. Acendeu a luz da cozinha para ver melhor. O longo pescoço apresentava um ferimento. Sangue e água formavam uma poça ao redor de seu corpo. Limpou o ferimento. Passou um pedaço de gaze ao redor do pescoço e prendeu com esparadrapo. O animal sequer esboçou alguma reação. Antes de apagar a luz, esmigalhou um pouco de pão dormido pelo chão, ao alcance do pássaro. Foi para a cama.

Pedro levantou num só pulo. Estava atrasado. O chefe já o tinha advertido de seus horários. Foi à cozinha tomar água. O pássaro já não estava mais lá.

Saiu com pressa, despencou escadaria abaixo. Chegou à garagem junto com o elevador. De dentro dele, saiu sua vizinha do final do corredor.

Apenas um aceno com a cabeça era suficiente. Deixou-a passar a frente no estreito corredor que levava aos carros estacionados.

Nesse momento, as chaves do carro que a moça balançava entre os dedos caíram com um barulho estridente. Adiantou-se para ajudá-la. Abaixaram juntos. Um tremor percorreu-lhe o corpo. Com o movimento, parte da echarpe de seda que cobria o pescoço da jovem deslizou para os ombros, deixando à mostra um pedaço de pele, onde a visão de um curativo feito com gaze e esparadrapo, ainda manchados de sangue, tirou sua respiração.

Devolveu as chaves sem conseguir tirar os olhos da moça. Ela disse obrigada e, após um silêncio que pareceu eterno, acrescentou: por tudo.

Durma bem

Sergio Vinicius Ricciardi

Meia-noite. Lá fora, as folhas do jardim farfalhavam ao vento, refletindo o pálido luar. Uma pequena mãozinha aciona a lâmpada de cabeceira. Um quarto mergulhado na penumbra, surge, com uma estante cheia de bonecas de olhos de vidro que a encaram interrogativamente. A mãozinha então aciona outro botão e espera com o cobertor sob a cabeça.

Ele surge à porta.

- O que foi dessa vez?

- Tem uma coisa ruim no armário.

- Já disse que é sua imaginação.

- Não é nada, eu escutei.

- Preciso dormir. Seja boazinha. Não tem nada no armário.

- Tá bom. Mas se eu chamar, você vem?

- Venho.

- Boa noite.

 - Dorme bem, linda.

O quarto mergulhou na escuridão total outra vez.  Durante um tempo dava somente para ouvir sua respiração acelerada e os batimentos de seu coraçãozinho. E o barulho de algo roçando na grade do armário... Ela senta-se bruscamente na cama, aperta o botão do chamado, acende a luz.
Novamente ele vem, com sono e chateado.

- De novo. Eu te falei que não tem nada no armário.

- Mas eu ouvi, era um barulho fazendo “tec-tec-tec”...

- Não tem barulho nenhum. Volta a dormir. Amanhã eu trabalho e tu tens aula.

- Tá bem... (Chorando).

Silêncio e escuridão de novo. Apenas o vento e a agitação das árvores. De repente a porta do armário começa a se abrir com um ruído: creeec...

Ela dessa vez não aperta o botão. Grita, grita tão alto que em segundos ele aparece em seu quarto. Com pena da sua reação infantil, resolve ser mais amigo e carinhoso dessa vez.

- Querida, queres que eu te mostre como não tem nada aqui?

- Ela, entre prantos, faz que sim com a cabeça.

- Então vamos lá, vou abrir a porta do armário! Um, dois e...

Quando chegou a contar três, virado de frente para o armário aberto, foi atingido em cheio por um grande facão. Sentada na cama, ela pôde ver a ponta da faca subindo pelas costas dele até a nuca. Quando seu corpo caiu sem vida no chão, foi que a criatura mostrou-se completamente, com seu saco a tiracolo, facão pingando sangue e seus dentes pretos e pontiagudos.

Comprimida contra a guarda da cama, ela tentou gritar, mas não emitiu nenhum som.

Papel preto

Aline Hübner Prado

- Boa noite. Eu gostaria de uma mesa para dois, por favor.

- Eu receio que isso não seja possível, senhor.

- E por que não? Pelo que posso ver o restaurante está quase vazio.

- Infelizmente faz parte da nossa política não aceitar pessoas de papel.

- Mas isso é um absurdo! Apesar de ser de papel, tenho tanto direito de jantar aqui, como qualquer outro! Quero falar com gerente, já!

- Um momento, senhor. Vou chamar nosso gerente.

Alguns instantes depois.

- Pois não, senhor. Como posso ajudá-lo? – diz o gerente.

- O maitrê de vocês acaba de me dizer que não sou bem-vindo à casa por ser feito de papel.

- Isso  não é verdade, senhor.

- Então é possível conseguir uma mesa?

- Infelizmente não, senhor.

- Mas por que não?

- É que o senhor é feito com papel preto.