O livro



Jacira Fagundes

- Moça. Oi, moça! Pera aí!

- Tá falando comigo?

- Olha. A senhora esqueceu este livro no banco.

- Eu não esqueci – Joana se aproxima – deixei o livro de propósito. Pode levar pra casa.

- Poxa. Um livro tão bonito. E novo. A senhora não quer mais ele por quê?

- É que eu tenho outros tantos iguais a este.

- Iguais? O mesmo livro? Como assim?

- Vamos sentar aqui no banco. É uma história comprida. Sabe, eu gosto muito deste livro. Fui eu que escrevi, por isso que tenho muitos.

- A senhora escreveu um monte de livro, tudo igual?

- Não, eu escrevi a história, uma vez só. Daí eu mandei publicar. Foram feitos vários iguais a esse que está na sua mão, para muitas pessoas lerem, entendeu? Como é o primeiro livro que escrevo, consegui vender muito pouco. Então resolvi distribuir pelos bancos de praças. Para quem encontrar o livro, levar para casa e ler. Mas parece que você gostou. Quer ser meu leitor? Posso até te deixar meu autógrafo. Como é teu nome? O meu é Joana.

- É Maicon, mas pode me chamar de Rato. Aqui na praça tá cheio de moleque que nem eu. Cada um tem o apelido de um bicho. O meu melhor amigo é o Raposo, eu nem sei o nome dele de verdade. Mas olha, Joana, eu não vou ficar com o teu livro. Não sei. Não sei, não sei...

- Não sabe ler? Que idade você tem, Maicon?

- Eu tenho catorze. Puxa vida, mas é um livro tão bonito, cheio de figura, tudo colorido. Deve ser uma história legal, né?

- É sim. Uma história bem legal.

- Eu queria saber esta história. Será que dá pra tu lê pra mim? Eu ia contar pra molecada que quem me contou foi a mulher que escreveu o livro. Eles iam ficar até com inveja.

-  Claro, Maicon. Chega mais perto. Assim. Vai ser um grande prazer.

- Pera aí, Joana, pera aí. Não começa ainda. Lá vem vindo o Raposo. Ele também não sabe lê. – Raposo! Raposo!

O caderno


 Ramon Marlet

Hoje posso compartilhar segredos que estão marcados como tatuagem em meu corpo. No começo era muito tímido, mas tantas pessoas já me viram nu que nem sinto mais vergonha. Ainda mais agora que estou esquecido neste lugar escuro e apertado.

Já sofri os mais variados tipos de tortura: fui arremessado inúmeras vezes rumo ao desconhecido, ameaçado de extinção e enclausurado . Mas não guardo mágoas e muito menos rancores, apenas lembranças de um passado cheio de descobertas e felizes realizações.

Ser o fiel escudeiro de uma donzela em formação, como dizia seu pai, não era tarefa para qualquer um. Apesar de sempre oferecer caminhos lineares, me divertia quando Bia ignorava tudo e fazia as coisas do seu jeito, mesmo quando não tinha ciência de suas ações. O tempo foi passando e, de tanto que insisti, minha melhor amiga acabou aceitando minhas sugestões. Até o seu toque foi ficando mais leve, suave e preciso.

Mas veio a adolescência e junto com ela uma ira irreconhecível. Aquela não era mais a Bia que eu conhecia. Me jogava como se fosse um estranho ao chegar em seu quarto, e estava sempre acompanhada por um pequeno aparelho cheio de teclas e luzes, além de suas amigas. Como já ouvira tantas vezes de sua própria boca, por que precisar de um caderno velho quando se tem boas companhias e tecnologia?

Mas o pior ainda estava por vir. Fui condenado, exilado e obrigado a permanecer em silêncio, trancado em uma velha caixa de papelão com vários outros companheiros de jornada. Todos com desejos de vingança em seus corações. Menos eu.

Sei que sempre viverei de lembranças e, acredite Bia, são as mais puras e confortantes de todas. Sou extremamente orgulhoso por tudo o que já passamos juntos. Mas gostaria de pedir a você um favor, juro que o último. Eu ainda posso fazer o que você quiser e sempre farei, mas, pelos velhos e bons tempos, imploro que não me deixe aqui esquecido ouvindo os seus cliques, nesse canto qualquer. 

Indiferença



Valécius Passos

No jantar diário só se ouvia o tilintar de garfos e facas.

Como capim, começou a crescer um muro, a partir do chão, bem no meio da mesa. Todo dia brotava um novo tijolo. A argamassa precisava de silêncio para preencher os labirintos que se formavam geometricamente entre as peças.

Assim o muro foi crescendo.

Chegou à altura da mesa e ninguém deu conta. Passou do nível dos rostos e não se notou sua presença. Subiu até quase o teto. Quando ficou escuro para um lado ele acendeu uma lamparina.

Até que o último tijolo, hermeticamente, fechou o derradeiro suspiro de convivência, enquanto ele se servia de arroz e ela abocanhava uma asa de frango.

O Alvo

 


Ceres Marcon

Irina estacionou o carro em frente ao seu objetivo e franziu a testa descontente quando o celular tocou. Recolheu-o do banco e abriu a mensagem. Alguns contratantes não entendiam seu modus operandi, transgredindo as normas estabelecidas e deixando-a irritada. Só aceitou aquele serviço porque o dinheiro compensava. Teria, finalmente, um de seus sonhos realizado. Leu o recado para em seguida desligar o aparelho e guardá-lo no bolso da mochila.

Desembarcou e subiu rapidamente ao terceiro andar pelas escadas internas, dispensando o elevador. Aproveitou o tempo para calçar as luvas de látex. A sala que escolhera se encontrava em reforma, e os trabalhadores estariam aproveitando a folga do feriado. Abriu a porta com a cópia da chave, feita dias antes, e parou em frente à janela permitindo-se um leve sorriso diante de tamanha sorte. Ela via o restaurante sem qualquer obstáculo como postes, fios, árvores.

Puxou uma mesa pequena onde colocou a Glock que carregava na cintura, presa no cós da calça, e a mochila. De forma metódica, montou os componentes da AS50, sem deixar de verificar se todos estavam ajustados corretamente. Com a cantoneira acomodada no ombro, Irina observou o trânsito. O sedã preto aproximou-se do meio-fio e desligou o motor enquanto ela ajustou a mira e aguardou por seu alvo. Uma leve pressão no peito fez com que inspirasse profundamente. A imagem do homem presa na lente de forma precisa trouxe-lhe um fragmento do passado. A visão ficou turva e o dedo retrocedeu assim como sua memória. Não era a primeira vez que ela hesitava.

A primeira vez foi anos antes, em seu quarto. Na cama, a loira ao lado de Marcelo erguia o lençol para cobrir o corpo, ele; visivelmente nervoso, elaborava frases de desculpas. Irina saiu em busca da Glock e retornou apontando a arma para a cabeça daquele que acreditava ser seu verdadeiro amor. Não, dessa vez não hesitaria.

O grito das crianças correndo logo abaixo de onde Irina se encontrava a despertou. Apertou os lábios e retomou o foco. Tinha um serviço para terminar. Mirou e apertou o gatilho no instante em que uma voz masculina invadiu a sala.

― Hei! Você não pode ficar aqui.
Ela encarou o intruso, pegou a Glock que deixara sobre a mesa. A bala atingiu o peito magro do sujeito, e o sangue não demorou a se espalhar pela camisa branca e engomada. O homem tombou sem a menor reação.

Da janela pôde ver e ouvir o pânico das pessoas que se escondiam atrás dos carros estacionados. A porta de vidro do restaurante encontrava-se estilhaçada. Muitos apontavam para cima, em busca do lugar de onde o tiro havia partido. Marcelo mantinha-se agachado, com os dois seguranças protegendo-o e empurrando-o em direção ao restaurante enquanto o carro retornava do estacionamento.

Irina sabia que naquele momento seu principal inimigo chamava-se tempo. Não demoraria até a polícia aparecer, mas o que mais a preocupava era não completar o serviço. Passou por cima do corpo em frente à porta; desceu as escadas sem pensar nos degraus, ainda empunhando a Glock; atravessou a rua e parou somente quando, com dois tiros certeiros, derrubou os brutamontes.
Viu Marcelo correr para dentro do restaurante e o seguiu.

― Não quero atirar nas suas costas ― ela gritou para se fazer ouvir.
Mesmo com todo o burburinho ao redor, escutou o riso debochado que escapou dos lábios dele. Segurou a arma com força e esperou que ele se virasse. Percebeu, naquele momento, que o destino tinha um nome e a colocara diante de Marcelo.

― Faz tempo, não é, Irina?

― Muito.

― Achei que tivesse abandonado a profissão.

― Sempre ficam negócios inacabados.

― É negócio seu, ou de algum outro?

Ela afrouxou a arma. Algo em Marcelo havia mudado.

― Eu não sabia que era você.

― E se soubesse? Faria diferença?

Irina não respondeu. Escutou o barulho dos carros da polícia se aproximando.

― Não precisa continuar, Irina. Podemos retomar nossas vidas. Eu ainda....

Ela atirou antes que ele pegasse a arma na cintura. A bala acertou Marcelo no meio da testa, seus olhos azuis continuaram abertos, olhando para o teto.

― Largue a arma!

A voz de comando do oficial fez Irina se movimentar. Correu em direção à cozinha, espalhando temperos, panelas e assustando o cozinheiro. Alcançou a porta dos fundos, dando de cara com um muro de tijolos. Precisava vencer os quase dois metros de altura que a separavam da liberdade. Colocou a Glock na cintura e puxou com força um dos containers de lixo. Subiu agarrando-se à borda dos tijolos. Escutou mais um grito tentando detê-la e um tiro estourou um dos tijolos próximo a sua mão. Jogou-se para o outro lado, sem pensar. Caiu em um jardim estreito torcendo o tornozelo. Não pretendia parar. Mesmo mancando, prosseguiu. Mais uma casa. E outra. E a terceira. Mais três passos. Na última, a garagem aberta oferecia-lhe um carro a seu alcance. Puxou a maçaneta, que cedeu. Entrou, arrancou os fios debaixo do volante fazendo o motor roncar. Acelerou em direção à rodovia. Olhou pelo retrovisor. Os policiais ainda não começavam a pular o muro. Dobrou à direita e abandonou o veículo em uma rua lateral distante algumas quadras de onde deixara Marcelo.

Uma hora depois, no chalé em frente ao lago, sentou-se no sofá observando o fogo na lareira. A imagem de Marcelo no restaurante continuava a incomodá-la. Talvez o contratante soubesse de sua história e a usara para eliminá-lo, ou tudo poderia ter sido apenas uma coincidência.

Mais um bip chegou, iluminando a tela do celular, para confirmar que o dinheiro se encontrava em sua conta. Conferiu no computador se a mensagem dizia a verdade. A quantidade de zeros que seguia o primeiro algarismo provocou-lhe um sorriso de satisfação, mesmo que a sensação de ter sido usada pelo contratante ainda a incomodasse.