E se não existisse humor?



Alice Otero


Tem gente que faz piada o tempo inteiro. Tem gente que acorda feliz na segunda-feira às seis da manhã para ir trabalhar. Tem gente que faz piada até em velório. Tem gente que nos alegra com um simples sorriso. Tem gente que tem a risada tão engraçada que a gente ri junto. Tem gente, como eu, que simplesmente não consegue imaginar a vida sem humor. Mas e se o mundo de repente fosse um lugar privado de humor, de comédia e de riso? Vamos tentar imaginar...

Por incrível que pareça, o mundo sem humor teria algumas vantagens sobre o mundo como é hoje. As pausas no trabalho para fazer piadas e comentários engraçadinhos cessariam, e seríamos ainda mais produtivos. Nos livraríamos desse humor inconveniente que nem chega a ser humor, formado por piadas racistas e preconceituosas. As loiras, as sogras e os portugueses voltariam a ser apenas loiras, sogras e portugueses. Também não teríamos o humor chato: seria o fim da sequência de piadas de pontinhos, das quais rimos por pena, e o humor de borracharia sumiria por baixo dos pneus, envergonhado e cheio de graxa.

Mas as vantagens param por aí. O mundo sem humor seria pesado, quase robótico. Mas o mundo como está já não é quase robótico? Imagine se não tivesse humor! O humor deixa nossa vida mais leve e relaxada. Homens e mulheres valorizam parceiros bem-humorados, e o humor virou arma de sedução. Sem humor, basearíamos os relacionamentos unicamente em aspectos como beleza e status. As academias, as clínicas estéticas e as revendas de carros de luxo lucrariam como nunca, pois alguém sempre sai ganhando.

O humor bem-feito é uma das melhores demonstrações de inteligência do ser humano. Para fazer humor de verdade, é preciso pensar – muitas vezes pensar rápido para surpreender, para não perder o tempo ou, pior, para não ter que explicar a piada. Uma boa ironia vale mais do que uma explicação: para bom entendedor, meia palavra basta. E falando em palavras, o quanto perderíamos sem os jogos de palavras, os trocadilhos, as trovas, as paródias... Boa parte do nosso cérebro deixaria de funcionar, viraria um mero funcionário.

Pois é. Sem humor não dá para viver. Vamos usar o humor enquanto o temos, enquanto não o tiram de nós. Vamos usá-lo com moderação para que não vire incomodação. Vamos usá-lo com inteligência para que não pareça displicência. Vamos usá-lo com amor para que não vire um tumor.
Sem humor, o mundo seria tão sem graça quanto um suflê de chuchu. Ou este texto.

Descoberta

Robson Cabral



Então eu nasci, ou tive consciência de que estava viva a partir do momento que meu corpo saiu de outro corpo, um ser oval, meio gelatinoso e transparente.

Rastejei um pouco e vi grupos de seres iguais a mim, de várias cores.
Me aproximei de uma dessas criaturas.

- Como você se chama?

- Nion. E você?

- Sou Fila. Tem tantos parecidos conosco aqui. Onde estamos?

- Vivemos entre botões de um teclado de computador.

- Quem sou eu e quem são esses outros?

- Você é uma bactéria. E todos esses outros são nossos irmãos.

- E o que fazemos aqui?

- Comemos essas pequenas coisinhas que você vê impregnadas nas paredes e nos reproduzimos.

Um brilho distante começou a surgir. Alguma coisa grande, branca e com textura cheia de risquinhos vinha de cima, apertava rapidamente aquilo que Nion chamou de botões, fazendo um som de baque e movendo as paredes ao nosso redor. Ouvi também o som de um atrito.
       
- E agora, o que é esse brilho todo e essa coisa grande que faz as paredes baixarem e levantarem e esses sons?

- Está amanhecendo Fila. E essas coisas brancas são os dedos de um humano usando o teclado. O som é ele comendo algo. Não vê que caem migalhas nas paredes ao nosso redor? É disso que nos alimentamos.

O dedo chegou muito próximo de onde eu estava.

- Posso me aproximar dele?

- Pode. Mais cuidado! Alguns de nós fizeram isso e nunca mais voltaram.

- Por quê?

- Porque eles entraram na pele desse humano e ali ficaram. Não sabemos ao certo o que fazem ali. Aquelas nossas irmãs verdes não conseguem mais entrar nele depois que a primeira fez isso.

- Entendi. E agora? O que eu faço?

- O mesmo que todos nós. Você se alimenta, em algum momento vai se reproduzir, vai continuar se alimentando, se reproduzindo e um dia vai morrer.

Dito isso, Nion começou a ficar muito transparente, a diminuir bem na minha frente e sua voz ficando mais fraca a cada instante.

Epifania

Tusnelda Marins


Escrevia furiosamente numa folha de papel almaço. O quê? Ninguém sabia. Não mostrava seus escritos nem para a mulher, que nessas horas adejava em torno dele, tentando ler o que ele tanto escondia.

Era um homem normal: casado, vários filhos, funcionário público. Tinha essa mania. Repentinamente, parava o que estava fazendo, tirava as folhas de almaço da pasta e, com uma expressão de puro êxtase, rabiscava por horas a fio coisas que ninguém leria.

O mais estranho é que, de tempos em tempos, considerava sua obra pronta. Sentava-se então, na sala, perto da lareira, acendia um charuto cubano e, cheio de prazer, queimava folha por folha do papel, deixando as cinzas caírem nas brasas ainda quentes. Quando terminava dizia: pronto! E logo, alguém o via novamente debruçado sobre suas folhas, a escrever .

Um dia, amanheceu com uma dor esquisita no braço direito. Atribuiu-a a seus constantes escritos. Resolveu, com pesar, não escrever nada naquele dia. Era um domingo, pleno de sol. O rosto rebrilhava, colado à vidraça da sala; ele sussurrava ininterruptamente. As palavras que expulsava de sua boca dissolviam-se no baço da janela. Ficou horas assim. Precisava desocupar seu cérebro de qualquer maneira.

Em vão, sua mulher tentara tirá-lo de lá. Por fim, esquecida nos afazeres da casa, só foi lembrar-se dele quando tinha terminado o almoço. Encontrou-o caído, com dores terríveis no peito. Atônita, gritou pelos filhos. A filha viu o pai caído e ficou lívida. Seus olhares se cruzaram e ela compreendeu o que devia fazer. Ajoelhou-se, retirou do bolso da calça dele o charuto, pegou os papéis da pasta e iniciou a cerimônia da cremação. Ao seu redor, instalava-se o tempo da morte.

Mesmo tentada por uma pontinha incômoda de curiosidade, a mão nervosa ia incendiando as folhas, uma a uma, e jogando-as na lareira. Fixou os olhos na chama ondulante e resgatou um cantinho de papel. Surpreendeu-se com o que leu. Ficou um instante, muito quieta. Depois, virou-se devagar para o pai e olhou-o com uma lucidez absoluta. Debruçou-se sobre o corpo sem vida, sorriu-lhe como nunca o fizera e lhe deu o primeiro beijo de amor, nascido do entendimento de quem era aquele homem verdadeiramente. Decidiu nada contar à mãe.

No outro dia, a mãe viu-a escrevendo, furiosamente, numa folha de papel almaço...