Assalto



Paulo de Sá

- Cem reais – disse o ambulante que tentava vender uma rede na praia, em pleno domingo.
João, que morava numa quitinete onde mal dava para esticar os braços, não tinha a menor intenção de comprar a rede. Mesmo assim, contestou:

- Caríssimo.

- Pra você eu faço por oitenta.

- Por que pra mim? Tu nem me conhece.

- Te vejo sempre aqui na praia. Oitenta.

- Caro.

- Setenta.

- Caro.

- Por menos de sessenta eu não vendo!

- Tá me achando com cara de gringo? Não vou pagar sessenta reais numa rede.

- Cinquenta. – disse baixinho o vendedor, já entregando a rede.

- Tu não disse que não vendia por menos de sessenta?

- Pra qualquer um, não. Mas pra você, eu faço cinquenta.

A brincadeira estava indo longe demais.

- Ó, meu amigo, não vou comprar rede nenhuma. Só tenho dez reais – confessou mostrando a carteira.

- Fechado.

- Hein?

- Dez reais. Como é pra você, eu vendo. Toma aí.

Ele segurou a rede, incrédulo. Pensou em recusar novamente, mas temeu a reação do ambulante.
Achou melhor cooperar e entregar o dinheiro.

Será que Cristina volta?




Ana Cristina Sampaio Alves

As olheiras fundas denunciam as noites que não tenho dormido. Há uma semana não prego o olho. Os lençóis estão esticados na cama e não tenho coragem de desarrumá-los. Em compensação, todos os cinzeiros da casa transbordam. Esse vício ainda me mata, mas que fazer se o tempo não passa, a cabeça não descansa e a cada hora eu estico o pescoço na janela, olho pra um lado, pro outro, e nada?

Faz uma semana que Cristina bateu a porta, desligou o celular, sumiu no mundo. Já liguei para os amigos, os parentes, os colegas do trabalho. Nem sinal dela. Ontem saí na rua batendo nas portas dos vizinhos. Por um acaso não viram Cristina? Uns queriam saber o que houve. Brigaram? Ela estava doente? Deprimida? O que você fez a ela? Outros simplesmente nem sabiam quem era. E a cada porta que se fechava eu me perguntava por onde anda essa danada.

Outro dia li que existe telepatia. Então vou me concentrar em Cristina para ela captar minha angústia, minha saudade. Volta, Cristina! Estou te esperando. Não sei viver sem você. Por que me abandonou? Por que saiu de casa assim, sem nem se despedir, dizer para onde ia, a que horas voltava? Por que não foi trabalhar esses dias? Estará num hospital? Meu Deus, ainda não liguei para os hospitais!

Meu coração começa a bater forte. A imagem de Cristina sendo atropelada, entrando num hospital, passando por uma cirurgia. Ela estaria agora numa cama, sozinha, sem documentos, não sabiam quem ela era. Nenhum telefone, nenhum contato. Há uma semana ela deve estar lá, se recuperando, talvez sem memória. Por isso não telefona, não faz contato com os amigos ou com o pessoal do trabalho.

Vou até o quarto pegar o telefone e ligar para os hospitais. Em cima da cama, vejo algo que ainda não tinha reparado durante toda a semana. A bolsa de Cristina. E dentro dela está seu celular, seus documentos, sua carteira, suas chaves. Ela saíra sem levar nada? E me lembro de quando ouvi a porta bater, um baque surdo. Primeiro pensei ter sido um vento forte que tivesse batido a porta da frente.

Cristina teimava em deixar a porta aberta em dias de calorão. Gritei para que a fechasse. Não gosto que os vizinhos bisbilhotem a nossa casa. Ela não respondeu. Fui até a sala e não a vi. A porta estava fechada. Chamei por ela e nada. Estranho. Cristina? Percorri o apartamento e ela sumira. Pensei que tivesse ido comprar alguma coisa na rua, ido ao trabalho, à casa de uma vizinha, uma amiga, esperei até anoitecer e nada de Cristina voltar. Nenhum sinal dela. E hoje faz sete dias que ela se foi. Com certeza está num hospital, e eu, tonto, não pensei nisso antes, coitada.

Acabo de tropeçar em Cristina aos pés da cama. Ao lado do corpo, um mar de sangue. Estou paralisado e aos poucos tomo coragem de olhar à minha volta. As paredes têm manchas de sangue. No chão, pegadas e mais pegadas ensanguentadas. E percebo que são dos meus sapatos. Está quase tudo seco.

Nessa hora, deixo cair a arma.

D´ARC


Bia Marfinati

Ainda estava escuro quando Joana se levantou, mas já fazia um calor insuportável. Foi colocando o uniforme com pressa: calça, camisa, botina, colete. Prendeu o cabelo, mas não colocou o quepe, guardou na mochila. Usar o uniforme assim completo a deixava com cara de homem, não gostava.

Enquanto colocava a roupa de volta na mochila, pensava na missão do dia. Tinha boato de protestos na cidade e os trens estavam fazendo operação padrão, um prenuncio de greve e (mais) tumulto. Depois de mais de quinze anos como segurança e cinco como encarregada da companhia de trens, ouvia os sons das estações dia e noite. Os apitos, a gritaria, o freio. Era quase como se aquele barulho todo quisesse dizer alguma coisa, não deixava de ouvir nem enquanto dormia.

Com o tempo começou a compreender os sinais. Sons de batuque queriam dizer que era dia de jogo e ela tinha que direcionar o pessoal para evitar as brigas. Uma freada mais brusca era alguém que tinha caído na linha (ou se jogado, nunca se sabe), e a prioridade era dispersar os curiosos. Ficou tão boa em interpretar os sons que se dizia por aí que ela sabia o que ia acontecer. Na rádio-peão o boato é que Joana era a médium da CPTM.

Joana saiu, não beijou ninguém, não disse até logo, nada. Ficou só o gato miando pra trás, sozinho.  Sua intuição estava certa. Tiros, bombas, gente gritando. Os grevistas se encontraram com os estudantes perto de uma estação e começou o protesto, bem na hora que todo mundo estava querendo ir para o trabalho. Era velho desmaiando, gente apanhando, batendo e Joana lá, organizando o seu pessoal para tentar diminuir o quebra-quebra.

De repente um homem entrou com um pedaço de pau na estação e começou a quebrar tudo. Joana, destemida, se colocou entre o trem e o homem. Ele retrocedeu. Um repórter filmava tudo e Joana foi a heroína do jornal do meio-dia. Mais tarde, até recebeu uma ligação do governador, parabenizando-a por conter o vandalismo sem usar da violência. Era um exemplo, disse ele, da política pacifista adotada pelo estado, do excelente treinamento dos funcionários.

Joana foi embora feliz, vitoriosa. Antes, conversou com o seu pessoal, agradeceu a todos e dispensou o turno. Trocou de roupa, colocou uma saia fresquinha e decidiu passar na igreja para agradecer por não ter morrido naquele dia.  Entrou no ônibus e dormiu, encostada na janela.

Estava tão cansada que não ouviu quando dois meninos, com seus 13 anos, entraram no ônibus e mandaram todo mundo descer, jogando gasolina por todos os lados. Quando viram o quepe caindo da mochila, saíram gritando “É polícia! É polícia!”. Joana acordou no meio das chamas, sem tempo de se defender. Abriu os olhos e a última coisa que viu foi a multidão gritando do lado de fora.