O Astronauta

Pedro Thomaz Masullo

- Humberto, parabéns por sua grande conquista!
- Você já soube?
- Claro, todos estão comentando! – Orlando abraça o amigo.  - O que eu não sabia é que você será o primeiro brasileiro a participar do projeto Marte.
- Comecei a me prepararhá muito. Estudei em Harvard!
- Harvard tem curso para astronauta?
- Agora tem. Eu inaugurei a primeira turma.
- É muito difícil ser astronauta?
- Muito! Somente os alunos classificados com notas máximas em todos os períodos são selecionados para o programa.
- E o treinamento?
- A teoria é dada em Harvard e a prática na NASA.
- NASA? Você esteve lá?
- Qual outro lugar? É de lá que saem os heróis espaciais.
- Nossa! Qualquer dia você me leva para conhecer a NASA?
- Você será o meu primeiro convidado.
- Puxa! Obrigado, Humberto, você é um grande amigo. – Outro abraço.
- E quando você viaja?
- Logo que sair daqui. – A porta é aberta.
- Hum lá vem a sargenta – sussurra Humberto.
- Hora de dormir. – anuncia a enfermeira.
- Tchau Humberto amanhã a gente continua.
- Você ouviu Humberto? Hora de ir para cama.
- Ninguém manda uma celebridade dormir – retruca Humberto.
- Aqui até as celebridades têm horário para se recolher. Vamos, Humberto!
- Ficarei onde eu quiser e vou embora hoje mesmo! Amanhã me apresentarei na NASA. – Humberto se descontrola, aos gritos e enfurecido caminha em direção da enfermeira, que imediatamente aciona um alarme e dois enfermeiros corpulentos entram na sala a tempo de interceptarem Humberto, que é contido com uma camisa de força.
- Podem ministrar um sossega leão nele. – autoriza a enfermeira. – E naquelemesmo dia Humberto entrou em órbita.


Bicho-Papão

 Annie Pedersen

O barulho vinha do armário. Eram três batidas ocas: uma curta e duas longas. A sequência seguiu por mais quatro vezes, sendo que, na última, Carina arregalou os olhos. Ela apalpou a parede à procura do interruptor de luz. Não funcionou. Colocou suas pernas para fora da cama e tocou o chão com a ponta dos pés. Levantou-se vagarosamente e, com os braços estendidos e chutando alguns brinquedos espalhados pelo chão, cruzou o quarto. O barulho se repetiu pela quinta vez. Com as duas mãos bem firmes, uma em cada maçaneta, ela abriu a porta do armário de uma vez só.
Ouvem-se berros.
- Quem é você? – perguntou Carina com a respiração ofegante.
- Eu...eu...eu sou o bicho-papão. – Apesar da escuridão, o luar que entrava pela janela clareou parcialmente o rosto da criatura.
- Como assim bicho-papão? Isso é alguma piada? Saia já do meu armário!
- Seu armário? – a criatura franziu a testa. – Este quarto não é do Daniel?
- Daniel? Claro que não! Este quarto é meu!
- Você tem certeza disso? – A criatura tirou uma lanterna da prateleira e fez um gesto circular com a mão. Carina olhou ao redor.
- Meu Deus! – ela tapou a boca com as mãos. – Como é que eu vim parar aqui? Tenho certeza de que fui dormir no meu quarto.
A criatura levantou o dedo indicador e falou para que ela aguardasse um instante. Tirou um celular do meio de seu pelo felpudo e fez uma ligação. Carina cruzou os braços.
- Alô. É da administração? Eu gostaria de reportar um código amarelo aqui.  Quais são as providências que eu devo tomar? Aham...aham...tá bom.
- E aí? – perguntou Carina, ainda de braços cruzados.
- Bom, você terá que conversar com nosso supervisor para maiores explicações.
- Que supervisor? Ficou maluco?
- Por favor – insistiu a criatura. – Vá até a administração e fale com o supervisor. Infelizmente, eu não posso lhe passar maiores informações no momento. É só sair aqui pela porta do quarto, virar à direita, descer o corredor e depois virar novamente na segunda à esquerda.
Carina deu de ombros e saiu do quarto em passos largos.

Na placa desgastada da porta, lia-se ADMINISTRAÇÃO em letras vermelhas garrafais. Ela entrou sem bater.
- Olá! – disse um rapaz de cabelos curtos e encaracolados .  – Você deve ser a Carina. Ele tirou o pé da escrivaninha e foi em direção à menina.
- Sim, sou eu mesma. E você? Quem é? O que tá acontecendo aqui? Por que acordei no quarto do meu irmão? E que criatura era aquela no armário?
- Calma, calma. Vou lhe explicar tudo.  Sente-se, por favor. – Ele puxa a cadeira para ela. – Meu nome é Morfeu  e você não está na sua casa. Quero dizer, não na sua casa de verdade.
Ela franziu a testa.
- Parece estranho, eu sei, mas, na verdade...como posso te dizer...você está sonhando.
- Sonhando?
- Sim, sonhando.
- E por que preciso que me falem que estou sonhando? Isso nunca aconteceu antes.
- Porque algo estranho aconteceu com este seu sonho em específico.
- O quê? – suas sobrancelhas se arquearam.
- Bom, eu não sei exatamente o que aconteceu. É a primeira vez que temos um código amarelo. Talvez seja culpa da lua cheia. Coisas estranhas sempre acontecem em noites de lua cheia. – Ele fez uma pausa. O olhar dela continuava fixo no dele. – Melhor eu ir direto ao assunto: você está sonhando, mas está no sonho errado. Na verdade, está no pesadelo errado. Este pesadelo era para ser do Daniel, seu irmão caçula.
- Você tá de gozação com a minha cara. Isso é alguém fazendo alguma piada de mau gosto, não é?
- Veja bem – ele aponta para os monitores espalhados pela sala. – Eu sou o supervisor e daqui consigo monitorar todos os sonhos e pesadelos de todas as pessoas do mundo.  Mas, por algum motivo, eu não percebi que você estava no sonho errado.
- Tá. Suponhamos que você esteja certo e que eu realmente esteja no pesadelo do meu irmão.  Já que é você quem controla tudo por aqui, me faça voltar pro sonho certo, ora.
-  Antes fosse fácil assim. Não sou eu quem decide o que você vai sonhar ou deixar de sonhar. Assim como não é outra pessoa quem decide o que você vai viver ou deixar de viver quando está acordada. Isso depende de cada um. O meu papel aqui é monitorar as coisas para que elas ocorram conforme o previsto e conforme o escolhido por quem sonha o sonho que, até agora, sempre foi o sonho correto.
- Então, seguindo essa sua lógica, fui eu que escolhi estar no sonho do meu irmão?
- De certa forma, sim.
- E por que eu escolheria isso?
- Não sei.
- Hmmm... – Ela colocou a mão no queixo. – Você disse que consegue monitorar o sonho de todas as pessoas do mundo, certo?
- Certo.
- Posso ver meu sonho então?
- Bom, acho que sim. Normalmente não estou autorizado a mostrar os sonhos às pessoas, mas como esse é o seu próprio, acho que podemos abrir uma exceção. Qual seu nome completo?
- Carina Pereira dos Santos.
- Idade?
- Catorze anos.
- Cidade?
- Rio de Janeiro.
- Signo e preferência de sorvete.
- Câncer e morango. Que diferença isso faz?
- Ok, só mais um instante. – Ele digita as informações no computador a sua frente. O sonho de Carina aparece no monitor central.
- Ah! Que canalha! – Suas bochechas ficaram vermelhas.
- Que foi? – perguntou Morfeu, enquanto virava-se para olhar o monitor também.
- Meu namorado! Não tá vendo? Ele tá no cinema com a besta da Rebeca!
- O quarto do seu irmão é perto do seu?
- Um do lado do outro, parede com parede.
- Ah! Então é isso! Você deve ter olhado para esta cena e desejou não sonhá-la. Isso te levou para o sonho mais próximo fisicamente de você, o de seu irmão.
- Me diz uma coisa. – perguntou Carina após alguns instantes. Aquele bicho papão já terminou o expediente?
Morfeu olha para o relógio de pulso. – Daqui a cinco minutos.
- Tá bom, obrigada.

Carina levanta da cadeira num pulo e sai da sala. Ela volta para seu verdadeiro sonho. Só que, desta vez, ela aparece no cinema, de braços dados com uma criatura felpuda.

Disparada

Pedro Thomaz Masullo




Montado em seu cavalo Arisco, Gerônimo chegou a São Paulo após vinte dias de viagem, desde que deixou seu amado sertão. No percurso pensava em sua mulher, em seus cinco filhos e vez ou outra conversava com Arisco. Entre os monólogos uma coisa o intrigava: o alerta de sua mulher... 
-Zefina disse que em São Paulo tão caçando os sub...sub o que mesmo ela falô? Não me lembro, mas parece que lá tem bandidos perigosos perseguidos pela polícia. –iniciava os anos de chumbo.
Não demorou muito para ser avistado e considerado suspeito por agentes do DOI-CODI.Cercado por três carros, vários agentes saltaram dos veículos e...
- Pare, levante os braços e jogue a arma no chão!
- Isso não é arma. É meu rifle pra me protegê dos animar. 
- Insolente!  Que animal perigoso tem no centro da cidade de São Paulo? Pombos?- gritou um dos agentes, que lhe desferiu duro golpe de cassetete, fazendo-o cair de cima de seu cavalo.
- O que eu fiz? - perguntou incrédulo e atordoado o sertanejo.
- Cale a boca. De longe percebi que se tratava de outro subversivo.
- É isso! Subver..., não sei que é isso, mas me confundiram com o bandido que Zefinafalô.Seomoço eu não sôbandido não.
Mal terminou de falar e outro golpe de cassetete, agora na boca de Gerônimo, que passou a sangrar.
- Capitão, o que faço com o cavalo do comuna? - perguntou Azevedo.
- Mate-o. No centro de São Paulo só os cavalos da Força Pública podem transitar!
Gerônimo tentoucontestar a ordem do capitão, mas tarde demais,Arisco foi covardemente executado.
- Leve esse comunista ao centro de operações, faça-o confessar e lavre o auto deprisão em flagrantepor crime contra a segurança nacional.
- Senhor capitão, a lavratura de flagrante consome muito tempo e não tereia ceia com minha família. 
- Você tem razão, minha família também não merece passar sem mim. Que tal arquivarmos o processo?
- Entendi capitão. Arquivarei profundamente!
O pobre Gerônimo foi levado a um local ermo e escuro onde uma cova já esperava a próxima vítima da ditadura. Um tiro na cabeça, o corpo jogado no buraco e ainda vivo enterrado.Gerônimo expirou pela última veze se viu no lombo de Arisco retornando para a sua Josefina e seus cinco rebentos.
- Arisco,ocê tá vivo? Eu tô vivo tamém? Não acredito!  Não sei o que aconteceu, mas vamovortá agora mesmo pro nosso sertão. De lá não saio nunca mais. 
Arisco vai galopando, o galope deixou de atritar o solo, passou a cavalgar no ar e subir, subir...
- Arisco,ocêtá voando? Assim vamochegá em casa a tempo de assisti a missa de Natar!
Arisco e Gerônimo seguiram seu rumo desaparecendo no interior das nuvens que se assemelhavam a imensos flocos de neve em pleno verão brasileiro da noite de Natal.

INOCÊNCIA

Pedro Barbosa

              
  Quando voltei à realidade é que me dei conta do que havia feito. Que cena horrível. Sangue pelas paredes, pelo meu corpo. E aquele corpo, principalmente aquele corpo, totalmente irreconhecível aos meus pés. A barba empapada, o intestino saltado, o osso da perna com fratura exposta e a orelha caída ao lado.            
                Só naquele momento senti o verdadeiro peso daquele machado. Como podia eu, tão fraca, tão frágil, tão submissa, tão EU, ter feito uma coisa dessas?       
                Eu bem sabia que não podia mais aguentar aquilo, aquele homem, aquele bafo de bebida toda a noite, aquelas surras, aquelas palavras, aquela autoridade, aquela dor.            
                Deixei o machado ao lado da cama nessa noite, eu precisava me livrar daquele monstro! Esperei ele chegar com a agressividade de sempre, me mandando acordar pra dar pra ele, pra fazer a única coisa pra qual eu servia. Já ia tirando o cinto para começar o espancamento, me chamando de cadela.             
               
Admito que gostei! Parti para cima dele com o machado e acertei em cheio na cabeça. Não conseguia mais parar. Depois da cabeça, acertei a barriga, a perna, a cabeça, a barriga, a perna, a cabeça, a barriga, a perna!
                Eu sou culpada, admito. Cometi esse crime. Esse crime horrível! Vossa excelência e caro jurados, eu me declaro culpada.

Atrás da porta

Conto baseado na canção “Atrás da porta”, de Chico Buarque

Nanci Ricci

Olavinho entrou no quarto e olhou-me fixamente.Eram olhos de adeus, e não mais o olhar cotidiano de “Oi, cheguei”. Eu não tinha mais esperança de um dia ver esse olhar tão desejado, o do adeus, tanto que não acreditei, duvidei, estranhei. Claro que o adeus podia ter partido de mim, já que não o amava há muito tempo (aliás, nunca o amei, ou o amei a princípio, não sei, nunca sei), mas havia algo inexplicável, além de qualquer compreensão humana, que me impedia de eu mesma dar um grande adeus.

Debrucei-me no corpo dele, agarrei-me nos cabelos, nos pelos dele, no pijama, nos chinelos, nos pés, nos dele e nos da cama; abracei o tapete, murmurei bem baixo atrás da porta e arrastei-me chão afora.

Em seguida, passei a soltar impropérios, um pior do que o outro, alguns que nem mesmo eu conhecia. Maldisse tudo, a vida, a minha e a dele, ele, a família dele, as coisas dele, tudo o que houvesse no mundo e que de alguma forma a ele se referisse.

Foi aí que veio o “granfinale”, que era provar, a todo o custo, que eu era só dele, sempre havia sido dele e de mais ninguém. Que sem ele eu ia querer me matar, nada mais restaria a mim naquele momento, e bastaria ele sair por aquela porta do quarto que eu sairia pela porta torta da vida. “Te lo juro que me mataré”, disse umas vinte vezes. A minha ascendência espanhola me fazia soltar frases em castelhano no meio das discussões, não importava o tamanho e a gravidade do assunto, eu sempre tinha de soltar “Madre de Dios”, “No me vengaconesoahora”, e daí por diante, o que o irritava bastante e por isso eu continuava.

Ainda que eu estivesse sendo bem convincente, pois percebia os olhos dele meio fora de órbita, ele não deixava de tirar as roupas do armário e colocá-las em uma mala enorme.

Enquanto eu chacoalhava todo o corpo de escandalosamente chorar, deitada de bruços na cama, ele saiu arrastando aquele malão para fora do quarto e da minha vida sem dizer palavra.

Quando tive certeza de que ele havia ido embora mesmo, de verdade, comecei a dançar pela casa e a bater palmas sozinha, rindo para mim mesma.Finalmente agora ia poder ter um Labrador, já que, morando com o Olavinho , um ser alérgico a tudo, seria impossível.

Uma terça qualquer

 Giuliano Damiani

- Cesar, você é criativo, né?
- Porra, Rubens! Só quando estou bêbado — responde levando o copo até a boca — Outro amigo, rindo com ar satírico, perguntou:
- Porque precisa de alguém criativo? Quer abrir outro negócio falido?
- Nada disso. Estou em uma oficina literária e preciso entregar uma história de até trinta linhas; feita exclusivamente com diálogo.
- Caralho! Rubão, paga mais uma lá que eu ajudo.
- Já sei! - disse Marcos. - Escreve uma discussão entre um petralha e um coxinha. Esse tema tá na moda.
- Muito complexo para trinta linhas e muito chato de escrever.
- Cacete! O álcool não falha. Escreve sobre um filho que conversa com o pai e no final, como um "plot twist",você revela que o cara esta assustadíssimo, pois o pai morreu há anos.
- Batido demais e não sei se ficaria bem, sendo estruturado só em diálogo.
- Pode falar sobre uma conversa no rádio entre um policial e a base. Vai por mim, o Marcão aqui sabe das coisas.
- Esse até que não é chato. Posso incluir uma ação "costurando" a conversa.
- Que bosta. Então é só ligar a "TV" no Policia 24 horas e copiar o diálogo de alguma reportagem. — exclama Cesar já passando do ponto etílico.
- Pensando bem, seria muito complicado. Teria que marcar muito as falas do policial e da base. Eu também queria pelo menos três personagens para dificultar um pouco as coisas.
- Bem, nós somos três. Porque não escreve sobre três vagabundos que estão em um bar terça-feira á tarde discutindo temas para um diálogo de trinta linhas solicitado em uma oficina literária?
- Tá ai! E nem preciso marcar as falas. O César é o bêbado que só fala palavrão; você é quem dáas boas ideias e eu sou quem as julga.
- Vão se fuder vocês dois. Não sou vagabundo e nem falo tanto palavrão assim. 

Sem Fantasia

Alexandre Silveiro do Canto




Desceu a escada do avião e colocou o pé direito na pista da base aérea. O joelho doeu. Esquecera do estilhaço naquela perna, deveria ter pisado com o outro pé. Apesar de a dor ser quase contínua, não se acostumava.

Era o último a descer. Olhou por um instante os soldados que se retiravam, capengueando, com as bagagens a tiracolo. Apressou-se a também deixar a pista. Não havia parentes para receber nenhum deles. A guerra não acabara, tinham apenas desmobilizado aquele regimento. Ganhara uma licença inesperada. Fora uma volta apressada, sem tempo para avisarem as famílias.

Dois anos antes, a convocação também o pegara de surpresa. Sabia da mobilização do pessoal da reserva, lógico, mas achou que demoraria mais para chegar na sua cidade. Lembrou do pânico; do pensamento mágico que seria dispensado na última hora; dos enormes olhos verdes da esposa pela janela do ônibus, se despedindo, quando a viatura do Exército se afastava; da sensação de irremediável solidão no avião que deixava o país.

Agora pegava o ônibus perto da base aérea para voltar para casa. A paisagem não mudara muito. Algumas casas viraram prédios, um shopping fora construído. À medida que rodava para os bairros mais afastados, a paisagem era cada vez mais semelhante à que lembrava. O ônibus estava quase vazio, e as poucas pessoas o olhavam de soslaio. Seria porque sua presença evocava a lembrança da guerra? Talvez nem fosse por isso. Um negrão de quase dois metros de altura com a farda do Exército chama mesmo atenção.

Tentou se acomodar no banco, o joelho doeu de novo. Aquele ferimento iria demorar para resolver. No dia em levou o estilhaço de morteiro na perna estava há mais de 12 horas deitado no chão, sem comer ou dormir, com terra e pó nos olhos, na boca e no nariz. Pensou nas histórias de guerra que já lera, do clichê de que os soldados ficam com "o cheiro de sangue impregnado nas narinas". Balela. O pior mesmo era o cheiro podre do barro velho, da lama estagnada. Quando ouviu o assobio fininho se aproximando, fechou os olhos e esperou. Ato contínuo, veio o estrondo, o deslocamento de ar que o chutou cinco metros longe, a nuvem de terra e pedras que lhe caiu por cima. Na verdade não fora um estilhaço que o atingira, e sim a energia e o material deslocados na queda do projétil. Claro, se um morteiro daqueles tivesse lhe atingido, seria agora apenas uma medalha, não estaria ali descendo a rua com a perna doendo. Mesmo assim, aquela avalanche – que além das pedras incluiu o corpo de um colega de batalhão que teve o azar de estar mais perto do epicentro da queda - fora o suficiente para lhe fraturar a perna e torcer o joelho. Até que tivera sorte. Em dois anos de front, não sofrera ainda nenhum arranhão. Tirando pela surdez progressiva, inevitável devido aos tiroteios, vinha escapando ileso.

Saltou do ônibus, andou um pouco, dobrou uma esquina: estava na sua rua. Começou a descer a rua a pé. Ruazinha quieta, de paralelepípedos, muitas árvores. Só casas, nenhum prédio. Ninguém na rua naquela manhã. Um cachorro latiu em algum lugar. Seguiu rengueando, arrastando a perna dolorida. Aqui sim, estava tudo como deixara; diria que até as peças de roupa nos varais eram as mesmas.

Parou na frente da casa. Nem soube o que pensar primeiro. Estava igual. Quer dizer, um pouco mais velha, mais descascada; o portãozinho um pouco mais enferrujado. Mas a mesma. Continuava inclusive sem campainha no portão. A janela da frente estava aberta. Imaginou-se lá dentro, a cara de feliz incredulidade da mulher; antecipou o abraço e as lágrimas. Se pudesse, choraria.

Armava os dois braços para bater palmas quando a criança apareceu na janela.

Estacou, o gesto congelado. Era uma menina. Devia ter um ano de idade, não mais que isso. Loira. Linda. Os imensos olhos verdes da mãe. A mesma boca rasgada. Apareceu engatinhando, decerto subira no sofá que ficava embaixo da janela. Ela lhe fitou fixamente por um minuto. Depois sumiu lá pra dentro.

Ficou congelado na calçada por um instante. Olhou a casa. Depois, aproveitando que ainda estava fardado, ficou em posição de sentido, fez meia-volta e rompeu marcha. A guerra ainda não terminara.