O Urso do meu vizinho



Nuccia De Cicco


Não sei bem porque os professores pedempra gente escrever uma redação sobre as férias. Nunca viajo, então as férias são sempre chatas. Ou eram até Seu Almeida ganhar o Urso.

Nossa rua não é perto de nada e todo mundo se conhece. Isso é uma tremenda porcaria quando a gente se mete em enrascada. Seu Almeida é o velhinho que mora na penúltima casa da rua. Alguns anos atrás, alguém entrou na casa dele e levou um bocado de coisas. Então, o filho dele botou o Urso pra morar lá, acho que pra cuidar do Seu Almeida.

O problema era que o Urso parecia sempre faminto. O Urso ficava espreitando a gente do canto dele e sempre que um de nós chegava perto das grades quase virava picadinho.E acho que gostava de meninos gordinhos. Tiago sofria pra sair e voltar pra casa. Dessa me livrei, moro na segunda casa. Ele morava na última e tinha que desviar do Urso andando na rua.

Uma vez ouvi meus pais conversando que o Urso era um pastor alemão danado de grande. De pastor, aquele bicho não tinha nada, vai ver até que era do inferno.Fiquei me perguntando se existiam Ursos na Alemanha.

Dona Samira, que morava antes do Seu Almeida, reclamava que o Urso latia demais. Ela era outra velhinha da rua, adorava flores e Roberto Carlos. Depois que o Urso chegou com latido fortão, o Roberto Carlos ficava abafado. Talvez o Urso não fosse tão ruim assim.

Nas férias, era pior. Jogando torneio de pelada na rua, a gente até tinha uma vara pra pegar a bola quando caía perto das grades. Rodrigo era o maior vacilão de todos, porque chutava forte e fazia a bola cair no terreno do Seu Almeida. Perdemos três bolas nas últimas férias.

Do outro lado da nossa rua tinha uma casa vazia. Nessas férias, uma família mudou pra lá. A gente ficou empolgado, pensando que o time ia completar de vez, mas quebramos a cara. Quando o carro chegou, saíram duas meninas de dentro. Meninas são como o Urso, estranhas, mandonas, barulhentas e famintas.

O dia mais bacana dessas férias foi cheio de sol. A gente estava no meio de uma partida quando Cíntia e Gabriela saíram de casa pela primeira vez. Todo mundo parou de jogar, coisa mais imbecil. Eram só meninas! Tá, tudo bem que a Cíntia tinha um cabelão bacana, e era mais velha, mas perder a bola foi sacanagem. Enquanto as duas irmãs desfilavam, a bola rolou até a grade. Na mesma hora, o Urso saiu do buraco dele e deitou perto.

Olhei em volta e não vi a nossa vara. Perguntei pro Lucas onde raios a vara se meteu. Rodrigo, com cara de pateta, falou que deu pra Gabriela, porque ela precisava pegar goiaba. Eu quase dei nele. Putz! Deu a vara da bola pra garota? E como que a gente ia pegar a bola agora? Tiago ficava me dizendo pra respirar fundo. Era outro que ia levar uns sopapos. Já estava pronto quando vi a metida da garota indo até as grades. Foi um auê! Todo mundo gritando, correndo, o Urso se levantando, ia ter pedacinhos de Cíntia pela rua toda.

Pra piorar a porcaria, a menina esticou o braço. A doida queria passar a mão no Urso? Ia perder o braço, as pernas, ia virar suflê! Eu via sangue espalhado por todos os lados, aquele cabelo lindo todo melecado de gosma cerebral só porque a menina cismou de ser menina, ou seja, idiotamente legal.Acho que nunca corri tanto na minha vida. Corri e consegui agarrar a garota pelos cabelos antes dela alcançar a boca escancarada do bicho. Caímos os dois no chão. Me ferrei bonito.

Quando a gente conseguiu se levantar, ela me empurrou e eu caí de novo. Ora essa! Salvei a vida dela! Ela gritava com voz esganiçada. Por que todas as meninas gritam com voz esganiçada? Gabriela chegou, atrasada óbvio, abraçou a irmã e... esticou o braço pro Urso! Todo mundo ali queria morrer? Todos nós começamos a gritar ao mesmo tempo, mas as meninas são, bem... meninas. Apertei meus olhos, não queria ver uma cena baseada em Game of Thrones. Fiquei esperando os grunhidos e, quando nada aconteceu, abri os olhos.Toda a turma estava de boca aberta, olhando as duas brincando com o Urso.


Só depois entendemos. A nova família era do outro filho do Seu Almeida. O Urso era deles, só maluco pra ter um bicho desse. Vou escrever na redação chata da professora que nas férias vivi o dia mais empolgante da minha vida: salvei alguém de ser triturado. Pena que esse alguém não entendeu isso, ainda me bateu!Depois, a maluca me chamou pra sair. Garotas são esquisitas. E aquele bicho continua gostando de garotos gordinhos.

DIÁLOGO




Carmen Silveira

—Termina teu leite, meu filho. Tá na hora, teu pai já vai sair. Quer levar uma fruta?   

— Quero, e um chocolate também. Hum...dois.   

— Dois chocolates? É muito!   

— Um é pra Luana, o outro é pra mim.    

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— Sabe mãe, a Luana veio pra aula com um chapéu de cabelo.   

— Como assim?   

 — Ela tá ficando careca, profe disse que é do remédio que ela está tomando.   

— ...    

— Deve ser um remédio muito ruim pra fazer cair até o cabelo.    

— Remédio sempre é pra sarar, meu filho. Quero muito que ela melhore.   

— Eu gosto de sentar perto dela na hora de colorir, ela tem uma caixa de lápis com todas as cores do mundo. E sempre me empresta.  

— Ela fica bonita de chapéu de cabelo?  

— Eu prefiro quando ela vem com um lenço de balões, parece que vai sair voando.    

— Quer levar um chocolate pra ela hoje?   

— Sim.    

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— Filho, voltou um chocolate, não quiseste comer?    

— Esse era o da Luana, mãe. Ela não foi na aula, a profe disse que ela vai faltar uns dias.    
— E não quiseste comer o chocolate dela? 

 — Não, mamãe, e nem os coleguinhas quiseram. Vou guardar pra quando ela voltar.  
  

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— Mamãe, sabe aquele chocolate da Luana?  
  
— Sim?   

  Não adianta mais guardar, ela não vai mais vir pra aula.   

— Quem falou?   

— A profe. Ela perguntou se ninguém queria falar sobre isso, mas ninguém quis. Ela mandou a gente ir brincar no pátio, mas ninguém foi.

 — Quer falar comigo sobre isso?   

— Não precisa, mamãe. Eu já cresci hoje na aula...