O julgamento do Lobo Mau



Emerson Albuquerque

― Lá em casa mora um lobo mau.Muitos podem dizer que eu sou louco, pois sou um carneiro e ele pode me devorar. Mas não, meus amigos. Ao contrário do que dizem por aí, o Senhor Lobo não é um devorador de porquinhos. E levá-lo para morar comigo e minha família é a maior prova da minha confiança.

O Júri formado por animais de diversas espécies olha incrédulo. Como pode o Dr. Carneiro defender alguém como o Lobo? O ovino continua:

― Ouçam, meus amigos. Dir-lhes-ei algo que irá surpreendê-los: O senhor Lobo é na verdade vegetariano.

Ouvem-se gritos de espanto. A família de Porcos mostra indignação na plateia. O Dr. Carneiro prossegue.

― Para provar o que estou dizendo, quero chamar aqui a Senhora Vaca para testemunhar.
A Senhora Vaca entra desajeitada. O Dr. Carneiro inicia as perguntas:

― Senhora Vaca, sabemos que o Senhor Lobo costuma frequentar seu restaurante. O que ele costuma pedir? Que exigências ele costuma fazer?

― Ele só come salada. E sempre pede para não colocar molho de tomate pois lembra sangue o isso o deixa enjoado.

― Agradeço, Sra. Vaca ― disse o Dr. Carneiro. Em seguida, virou-se para o Júri. ― Vejam, nobres jurados, o Senhor Lobo, além de ser vegetariano, se sente enjoado ao ver o vermelho do molho de tomate. Como pode essa sensível criatura ter tentado devorar três porquinhos lindos?

O Juiz da Seção, o Leão, ficou intrigado e resolveu fazer uma pergunta:

― Dr. Carneiro, se o seu cliente não tinha intenção de devorar os porquinhos, o que fazia ele batendo de porta em porta e destruindo as casas dos pequenos suínos?

― Meritíssimo, não podemos negar que o Sr. Lobo esteve na porta dos porquinhos e até que destruiu a casa de dois deles. Todavia, não houve dolo nessa ação. O meu cliente em nenhum momento quis prejudicar as três pequenas criaturas. O que acontece é que o Sr. Lobo é muito fervoroso em sua fé.

― E virando-se para o júri, prosseguiu ― O Lobo, meus nobres jurados, é Testemunha de Jeová. E na única e exclusiva intenção de levar a palavra de Deus aos porquinhos, acabou por exagerar na missão que lhe foi concedida e acidentalmente destruiu as frágeis casinhas de palha e madeira. Dessa forma, o Sr. Lobo poderia talvez ser acusado na esfera cível por danos materiais. Mas nunca pelo crime de tentar devorar os porcos. E digo mais: Talvez tenha sido o próprio Criador que, escrevendo certo por linhas tortas, fez com que o Sr. Lobo destruísse as frágeis casinhas e assim, tenha alertado aos porquinhos que deviam se proteger melhor. Agora estão os três morando seguros na casa de tijolos graças ao Sr. Lobo.

Ao fim do julgamento, o Júri absolveu o Lobo por unanimidade. E na saída do tribunal, este foi agradecer ao seu advogado e à Sr. Vaca, a testemunha de defesa:

― Obrigado, Dona Vaca e Dr. Carneiro. Graças a vocês estou livre.

― Só fizemos o que você nos obrigou a fazer, Lobo mau ― disse o Dr. Carneiro ― Agora espero que cumpra sua parte do acordo e liberte a Sra. Ovelha e o Bezerro.



O Conluio dos Bichos

Maurílio Menezes




Era uma vez um gato com asas. Todos na Avenida da Lã Vermelha se perguntavam por que o senhor Bigode Fofinho estava já há vários dias passando suas tardes esticado no parapeito do prédio em que vivia; um suntuoso apartamento com vista para a Clareira do Soninho e a rua do Rabo Molhado.

— Um mandrião — dizia o senhor Crina Lisa —, é o que eu digo, aposto minhas quatro ferraduras que ele passa a noite em claro enchendo a cara de leite, por isso passa os dias em sono profundo.

— Não seja tolo senhor Crina Lisa, todos, Oinc!, sabemos que o senhor Bigode Fofinho deixou o leite desde que a senhorita Pata Charmosa se espatifou após tomar três litros sozinha, Oinc!, e confundiu o moedor de peixe com uma lagoa — disse o senhor Rabinho Enrolado em tom sério.

Um longo minuto melancólico se fez no curral.

— Talvez ele só seja tímido — propôs Novelo Cinzento quebrando o silêncio.

— Bigode Fofinho tímido? — riu Orelhas Felpudas. — Me lembro quando certa vez ele convenceu a senhorita Pluma Mansa e sua irmã Bico Doce a afagar suas orelhas. Aquele sem vergonha não é tímido nem aqui e nem no Monte do Cascalho.

— Talvez então ele só esteja velho, todos sabemos como a idade pode corroer a vontade de um bicho.

— Quase todos aqui nascemos na primavera do Ano do Milho, e eu me lembro bem dele quando nasci; ele ainda era jovem e viril, como poderia então estar tão velho? — indagou a senhora Crina Desgrenhada.

A balbúrdia recomeçou, todos levantando suas suposições e teorias conspiratórias a respeito do gato que passava as tardes inerte fitando a Clareira do Soninho. A senhora Mula Aérea insistia que ele vigiava o bairro como um justiceiro, de prontidão a salvar alguém de algum assalto, mas ninguém deu ouvidos, pois ali todos eram civilizados e não cometiam nenhum crime — mesmo que uma certa vez o senhor Cauda Malhada tenha furtado “sem querer” um peixe na janela da senhorita Gansa Rosada. O senhor Penas Bovinas foi ainda mais longe, sugerindo que aquele gato na verdade observava o comportamento de cada um no bairro para que um dia quando ninguém estivesse olhando, ele pudesse sorrateiramente se enfiar em suas casas e roubar todos seus peixes, ovos e feno.

— O senhor Bigode Fofinho é bem capaz disso mesmo — ressaltou Orelhas Felpudas em tom de alarde —, lembro certa vez, que a Grande Bola Amarela no céu me queime se eu estiver mentindo, que ele foi à minha casa, veja bem, à minha casa, e roubou-me uma cenoura.

Na verdade Orelhas Felpudas não tinha certeza se ele havia mesmo roubado tal cenoura, mas dera por falta de uma no cesto. Sempre guardava sete cenouras no cesto, uma para cada dia da semana, e naquela ocasião ainda era quinta e só restava três cenouras; não era conveniente também dizer, por isso omitiu que era ruim em cálculos simples. Mas aquilo que disse foi o suficiente para colocar todos apavorados e inseguros. — Ele vai nos roubar, ele vai nos roubar tudo. — Diziam.

Foi então que o time da Ordem das Asas se prontificou a prender o infrator.

— Senhoras e senhores irmãos de asas — disse o delegado Porcão. — Não façam alarde, o tempo de medo já passou, nossos antepassados que viviam temerosos de terem suas peles arrancadas e suas carnes moídas, nós hoje não somos como eles, temos asas — completou erguendo sua asa alva e comprida.— Esse é o símbolo da nossa paz e liberdade, e se há alguém que queira nos tirar isso, nós o depenaremos.

Algumas senhoras se assustaram, mas logo o delegado se desculpou por sua expressão. Em poucos minutos um grupo de seis Sentinelas da Ordem estavam no céu voando em direção ao apartamento do senhor Bigode Fofinho.

Era fim da tarde, e ele ainda se encontrava reclinado sobre o parapeito. Seu pelo negro misturava-se ao lusco-fusco do anoitecer e suas asas brancas eram tudo que se via.

— Parado aí — disse um dos Sentinelas. — Senhor Bigode Fofinho, você está preso por roubo.

Mas o gato não não se moveu, como qualquer gato orgulhoso reagiria à voz de prisão.
— Vou repetir, senhor Bigode Fofinho: desça e coloque suas asas para o alto.

Novamente nada.

Então Orelhas Felpudas — que era um dos Sentinelas — se aproximou meio saltitando, meio planando. Com um esgar de desdém, disse:

— Seu plano já era gato maldoso, não é dessa vez que você vai roubar a todos nós.
Nisso ele o tocou com uma pata, mas o senhor Bigode se manteve impassível.

Tocou-o de novo, e nada.

Pediu ajuda a um dos cães para movê-lo, mas o senhor Bigode não deu a mínima.

Todas suas sete vidas haviam chegado ao fim, e com um sorriso fitava a sociedade que ajudara a construir.