E se eu tivesse coragem de impedi-lo...

D. Murad



Fiquei sabendo de sua viagem poucos dias antes. O aviso era otimista; um breve adeus a quem fica, e um convite ao que vier de novo nessa próxima aventura. Eu nunca tomei um soco no estômago, mas imagino que a sensação seja parecida. Mais ou menos como quando eu era criança e alguns garotos malcriados distribuíam rasteiras na hora do intervalo. O susto do tombo, o ar deixando meus pulmões de uma só vez, e depois somente dor.
            
Sempre fui amante de romances, viciada nas histórias coloridas que dão vida a uma realidade em preto e branco. Qualquer pessoa sensata diria que isso apenas nubla as expectativas de algo real, mas nunca me importei. Existem muitas outras pessoas como eu por aí, as sonhadoras, mesmo em segredo. E foi exatamente para uma dessas que eu contei sobre a viagem.
            
Ela riu e disse que a situação toda era perfeita. Quase o roteiro de um livro, daqueles que tomam nossas estantes e enchem estômagos inocentes de borboletas. Fez sua missão descobrir mais informações; o aeroporto, o horário do vôo, e até o portão de embarque. Tudo para facilitar o momento épico que eu deveria viver. Conversamos por horas a fio sobre o que eu diria quando aparecesse sem convite naquela ocasião tão absurda. Um “oi, tudo bem” parecia insuficiente. Não poderia fingir que estar ali era uma coincidência. Somente o fato de aparecer já serviria como um grande aviso em neon dizendo que eu não havia conseguido superar o que tivemos. E eu odiava o que aquele atestado de fraqueza me fazia sentir.
           
O dia da viagem chegou, e eu acordei às cinco da manhã com o coração na garganta. Tinha só duas horas até o momento em que o avião partiria, levando consigo metade da minha história. Peguei o carro na garagem e saí para o aeroporto. A rodovia estava vazia; era tão cedo que o sol mal iluminava o céu, e parecia que eu era a única pessoa acordada na cidade inteira.

Quando chegou a hora de virar na entrada, deixei passar. Fiz o retorno, repeti o caminho... E novamente não virei à direita. Parei no acostamento, abri todo o vidro e acendi um cigarro. Meus dedos tremiam, e a nicotina ajudou um pouco a acalmar meus nervos. De onde eu estava, dava pra ver aviões subindo e descendo, partindo e chegando. Não sei quanto tempo fiquei ali, talvez horas tenham se passado, mas, por fim, decidi dar meia volta. Se ele quis viver novas aventuras, eu não podia fazer nada para impedir. E talvez fosse mesmo a hora de eu pensar em viver as minhas próprias, também.

E se?

Luciana Santos Tardioli 



E se ela não tivesse partido? Sempre me questiono como seria se ela tivesse ficado aqui, conosco. Comigo, especialmente. Como seriam nossas vidas?

Continuaríamos a nos falar por telefone todas as noites. Provavelmente, faríamos aquele café das tardes de sábado para falar sobre a semana, as tensões do meu trabalho, as dificuldades de se viver em condomínio, se tínhamos ou não planos de engravidar.

Ela continuaria sendo a minha melhor amiga, confidente, alma gêmea que me seguia em todas as horas. Fiel escudeira e conselheira que validava meus sentimentos e escolhas. Sem ela, como escolher o melhor caminho?

E se ela não tivesse partido?

Os encontros de família certamente seguiriam cheios de risadas, mas de brigas, aqueles conflitos típicos por sua atenção ou as discussões acaloradas pela divergência dos gênios. E ela ali, 
conciliadora, mas ao mesmo tempo sempre muito firme, a nos dizer como agir, que hora parar.

Ela iria comigo ao shopping, como sempre foi, para ajudar na escolha das roupas, tomar um café, ou compartilhar um almoço simples, mas que sempre tinha aquele toque especial de cumplicidade que tornava o meu mundo cheio de significado, por mais banal que fosse nosso encontro.

 Ela desfrutaria comigo meus planos por uma casa nova, meus projetos de gravidez, minha vontade de vencer na carreira depois de tantas quedas que ela tinha presenciado, meu trabalho voluntário...

Mas ela partiu.

Para que não tivesse partido e assim a nossa vida seguisse o rumo que tínhamos como feliz e certo, a doença não poderia ter se instalado e com ela toda a dor típica que assola não só ao doente, mas à família toda. Hospital, médico, agulhas, ressonâncias, esperas, dor, sangramentos, tristeza, desgraça, mais dor.

Para que ela não tivesse partido, e não ter contraído aquela doença, talvez devesse ter sido poupada de todos os desgostos, da violência em casa, dos dissabores dos filhos, da mágoa em relação ao meu pai, de tudo aquilo que foi se enraizando e criando aquele monstro que a devorava por dentro e a tirava de nós pouco a pouco.


A questão é que não somos poupados, e ela se foi. E a mim, filha, ficam as lembranças e a imaginação livre procurando respostas para a pergunta que todos fazemos mediante a morte: e se? 

Felinos

Helen Sobreira


Nasceram, nasceram!
Cinco lindos filhotinhos,
a criançada bate palmas
cada um quer um gatinho.

Pedro escolhe o branquinho
de pelo espetado e olhos cinza:
- Parece uma corujinha,
com essa cara ranzinza!

Larissa pega o rajado,
põe no colo igual um bebê
- Olha, ele tá ronronando
- Eu também amo você!

João aponta o pretinho,
de pensativos olhos verdes
- Agora tenho um amigo,
não falo mais com as paredes.

Rose quer o cinzinha,
se parece com ela
tentando fugir da caixa
igual se pula a janela.

E por último Ana Paula,
sobrou-lhe o ruivinho
pega-o quase com medo:
- É tão delicadinho!

Com habilidades de ninja
a minha gata fugiu,
e dois meses depois
cinco fofuras pariu!

E se der positivo

Sabrina Sayuri Okada



Mamãe acorda cedo. A moça da farmácia disse que ela não precisava esperar amanhecer, mas essa é a minha mãe, sempre teimosa. Meu pai continua imerso no seu sono enquanto ela entra no banheiro. Pronto, agora teremos que esperar cinco minutos.

A ansiedade é tanta que ela precisa de uma distração. Um café, um cereal ou um desenho animado na TV. Qualquer coisa que faça parar esses deslumbres de nós dois tirando cochilos juntos e dando voltas no parque. Afinal, é desnecessário tanta expectativa por alguém que ao certo nem está a caminho.

O café fica pronto, mas apenas dois minutos passaram. Caramba, essa cafeteira que a vovó deu é rápida mesmo. O papai acordou com o cheirinho do café e achou mamãe agitada. Ela não conta, sabia que ele ia querer espiar antes da hora.

Três minutos. Ela não consegue evitar, imagina se deveria pintar o quarto de azul ou rosa. Ou talvez inovar usando amarelo, quem sabe até laranja. Mamãe imagina roupinhas e sapatinhos com personagens de desenhos da Disney. Pensou em todas as coisas na casa que eram perigosas. Eles teriam que colocar tampões nas tomadas e portões nas escadas.

Meus pais estão na cozinha, em silêncio. Papai sabe que quando ela acorda desse jeito, é melhor nem conversar nos primeiros minutos do dia. Eu acho que ele já imagina o que está acontecendo, a viu chegar da farmácia ontem. Ele lê o jornal e mamãe olha as horas no celular. Quatro minutos. Caramba, até eu estou achando que os minutos estão se arrastando.

Minha mãe respira por um minuto, dá um gole e se levanta. Será que eles estão preparados? Será que o dinheiro vai ser suficiente? Será que papai ficará feliz?

Uma faixa. Negativo. Mamãe joga a fita fora e encara o espelho por alguns instantes. Melhor se arrumar, deve estar no trabalho daqui uma hora. Queria poder dizer a ela o quanto já a amo, tranquilizá-la. Estou a caminho. Só não agora.

E se eu tivesse coragem de matá-lo

Maristela Martins Silva



Não sei explicar como aconteceu, mas o fato é que um dia desses ao arrastar o sofá para pegar a tampa da lapiseira, descobri no canto da parede um buraco quase do tamanho de uma bola de tênis. Intrigada, peguei uma lanterna e descobri que dois pequenos olhos brilharam avermelhados diante da luz. Fiquei apavorada imaginando o que poderia ser. E se fosse uma cobra, uma aranha caranguejeira? Como isso era possível? Tudo bem que eu morava no primeiro andar de um prédio, mas abaixo ainda tinha o primeiro e segundo subsolo para estacionar os carros. Pensei em chamar o zelador, mas não tive coragem de importuná-lo já que passava das onze horas da noite. Além do mais o que eu ia dizer, que descobri um buraco no canto da sala e dentro dele tem um bicho estranho?Não seria demais para uma advogada criminalista que convive com o que de pior da natureza humana, encara promotores e juízes,ligar no meio da noite amedrontada como se fosse uma criança?Ah não, que tipo de mulher eu era,afinal? Mas o fato era que eu tinha perdido a paz dentro do meu próprio apartamento e estava apavorada como se tivesse uma arma apontada para a minha cabeça. Com a certeza de algo estranho me observando naquele exato momento, corri para o meu quarto, girei a chave quantas vezes foi possível, peguei uma toalha úmida e enfiei no vão entre o piso e a porta. Passei a noite em claro imaginando o que eu faria se ao sair do quarto pela manhã me deparasse com uma cobra naja, erguida a quase um metro do chão,pronta para me dar o bote fatal.

Quando o dia finalmente clareou, fui sob as pontas dos pés até a porta, girei a chave quase em câmera lenta e ao abri-la de supetão dei de cara com um rato enorme comendo um pedaço do sanduíche que eu tinha deixado cair na correria da noite anterior. Diante do flagrante ele me olhou aterrorizado, saiu patinando no piso liso e se chocou com tudo contra a parede antes de acertar o buraco. Também parecia apavorado, porque nessa hora bati a porta do meu quarto com toda força. Respirei aliviada, embora eu soubesse que aquele não era um rato comum, porque além de grande, era branco e tinha manchas avermelhadas. Mas antes isso do que uma cobra ou uma aranha peluda.

A caminho do trabalho fui pensando- “e seu eu tivesse coragem de matá-lo”, o que eu faria? Pensei cutucá-lo com o cabo do rodo ou dar-lhe uma panelada ou preparar uma ratoeira ou colocar veneno num pedaço de queijo. Isso, veneno!

Quando no fim do dia voltei para o apartamento, ao abrir a porta falei bem alto: - comece a rezar,meu caro,porque hoje será a sua última refeição. Porém, enquanto eu preparava a substância no pedaço de queijo,me lembrei dos olhos amedrontados do rato, pensei no poder fulminante do veneno, na dor aguda e na agonia da morte certa. Não tive coragem e desistido meu plano.No entanto, convicta que debaixo do mesmo teto nós dois não coabitaríamos, em menos de dez dias eu já estava morando bem longe daquele lugar.



E se eu não tivesse lembrado?

Filipe Pinho

            - Alô.
- Sr. Filipe Pinho?
- Sim.
- É da Livraria Saraiva. Seu pedido já se encontra em loja.
- Pedido?
- Sim, Senhor! O livro "Ménage à Trois. Uma experiência que funciona".
Apesar de ter compreendido perfeitamente - voz de locutora a da funcionária - segui o protocolo dos confusos:
- Repita, por gentileza, a ligação deve ter falhado.
- O livro que o Senhor reservou na semana passada, "Ménage à Trois. Uma experiência que funciona", de Caco Fernandes, já está disponível em loja.
Adoro um belo engano. Me sinto protagonista de uma crônica.
- Sinto muito, minha amiga, houve algum equívoco.
- Sr. Filipe Pinho da Costa Leitão? CPF 005.898.657-27? RG 536789097?
- Bem, esse sou eu, mas posso lhe assegurar que não requisitei o livro.
- Estranho. Inclusive, consta que o pagamento já foi realizado. Basta receber em loja ou enviamos para o seu domicílio.
- Agora o engano ficou evidente. Tanto não pedi o livro, quanto nunca pago pelo produto antes de tê-lo em mãos.
- Ok, Senhor. Vou descobrir o que houve. Peço desculpas pelo incômodo.
- Imagina. Sem problemas.
Desliguei o telefone e aproveitei o momento. Rindo, imaginei uma série de situações constrangedoras consequentes daquele fato. Imaginei o livro chegando em meu domicílio. Imaginei a Viviane recebendo-o e tomando conhecimento do seu conteúdo. Imaginei...
De tanto imaginar, lembrei que receberemos, no próximo mês, uma amiga do intercâmbio da minha esposa. Vivi sempre falou da russa com brilho nos olhos. Que era muito educada, a mulher mais linda que já tinha visto. Lembrei, ainda, que Viviane já comprou livros utilizando o meu cadastro. E que paga antecipado.

***

- Livraria Saraiva, Boa tarde.
- Boa tarde, minha amiga querida. Sou o Filipe. Acabamos de nos falar. É sobre o livro "Ménage à Trois. A melhor experiência que terei", de Caco alguma coisa.
- Uma experiência que funciona, de Caco Fernandes.
- Esse mesmo... Desculpe o incômodo, viu? Mas o engano foi todo meu. Pedi o livro sim. Onde estava com a cabeça? A senhora pode mandar por domicílio?
- Claro, Senhor. Mas cobraremos um adicional de...
- Pouco me importa o adicional!