Curiosidade infantil



Bárbara Borba


- Mamãe, por que só eu tenho cabelo enrolado?
- Não é verdade, meu filho. Muita gente tem cabelo enrolado.
- Aqui em casa não. Todo mundo tem cabelo liso. Você, o papai, até o Gui.
- Isso é normal, Fê. As pessoas têm características diferentes. É uma das coisas que torna cada pessoa única.
- Na casa do Lucas todo mundo tem cabelo preto. Na casa da Letícia todo mundo tem cabelo amarelo.
- A Professora Tatiana tem cabelo enrolado. Aquela menina que vai na escola com você, filha da Sandra, também.
- A Sandra também tem cabelo enrolado. Igual o da Bruna. Porque é filha dela.
- Meu filho, nem sempre os filhos nascem parecidos com os pais. E não há nada de errado com isso.
- Só eu não saí parecido. O Gui também tem cabelo liso igual você.
- …
- Papai não tem cabelo. Aposto que seria liso se fosse grande. Só eu tenho cabelo enrolado.
- Tudo bem… É que o Gui é meu filho de barriga. Você é meu filho de coração. Por isso vocês são diferentes.
- O Gui não é filho de coração?
- Não… Quer dizer, de coração também. Mas nasceu da barriga.
- E eu nasci do coração?
- Sim.
- Por isso o Gui tem o olho da cor do teu e eu não? Por que ele saiu da barriga?
- Isso. Quem nasce da barriga sai mais parecido com os pais. Quem nasce do coração sai diferente.
- Hum.
- O que foi?
- O Jonas tem cabelo cacheado e essa pinta no braço igual a minha.
- Que… O quê?
- Ele não sabe de onde veio. Acho que a mancha significa que ele nasceu da minha barriga.

Primeiro beijo

Lucas Henrique Batista Pereira dos Santos


- Mãe, como foi seu primeiro beijo? Foi com o papai? Você gostou?
A mãe deixou o cesto de roupas no chão e sentou-se na cadeira da mesa de jantar de frente para a filha.
- Bem, filha, seu pai não foi o primeiro homem que beijei, já beijei vários homens. Mas ele foi o único que resolveu ficar, os outros foram embora e não voltaram mais.
- E com quem foi seu primeiro beijo?
- O nome dele era Lucas. Ele era lindo! Tinha cabelos cacheados, combinando com a cor dos olhos castanhos e o tom de pele branco, pouco marcado pelo sol.
- Você gostou?
- Nossa, foi maravilhoso. Ainda me lembro quando ele me convidou para caminhar na praia. Ele fazia academia e eu sempre gostei de exercícios. Quando terminamos a caminhada, sentamos na areia e ficamos vendo o pôr do sol. Eu disse, olhando para o sol: é lindo. Ele olhou para mim com aqueles olhos e disse: você também. Aí ele aproximou lentamente sua boca até a minha, colocando a mão entre o pescoço e o maxilar. Ainda sinto aqueles lábios encostando nosmeus. Lembro também que nesse momento não queria mais nada, só ficar ali, beijando ele para sempre.
- Então por que não ficou com ele?
- Porque ele conheceu outra e ela era muito mais bonita que eu. E também fazia academia, era mais o tipo dele.
- Mas você não ficou triste por não ser o cara certo?
- A principio, sim. Mas depois vieram outros mais interessantes. E depois veio seu pai, claro.
- Como você sabia que ele era o cara certo?
- Eu não sabia, mas ele me ajudou a descobrir. Me tratava como se eu fosse única no mundo. Trazia flores e chocolates. Hoje não traz, porque o trabalho ocupa muito tempo na vida dele, mas de vez em quando ele me surpreende com um buquê de rosas. Mas eu não saberia que era o cara certo, se não tivesse namorado ou conhecido outros rapazes.
- Hum...
- Mas me conta, você já teve seu primeiro beijo? Como foi? Você gostou? E como ele era?
- Na verdade, era ela.

E se ela continuasse algemada?

Milena Nunes



Acordou e ainda estava algemada. Esfregou os olhos com uma das mãos e tateou pela cama à procura dos óculos; encontrou-os perto da cabeceira e posicionou a armação próxima aos olhos, como gostava de usá-la, para ter certeza de que não deslizaria nariz abaixo.

Encarou, pelo espelho do armário capenga em frente à cama, seu cabelo desarrumado, tentando lembrar por quanto tempo ficara ali. Pela janela entreaberta, viu que já escurecia, o que lhe provocou um sobressalto; estava ficando com fome.

As algemas, presas em uma longa corrente metálica, permitiam que se deslocasse livremente por toda extensão do quarto, e também pelo corredor que conduzia ao cômodo subjacente, uma sala – que se encontrava em penumbra pelo avançado da hora. Ligou as luzes. Desnorteada, sentou-se na poltrona coberta pela malha de crochê e resmungou baixinho, lamentando ter perdido a chance de ir lá fora. Tentou ouvir o barulho do outro lado da parede, mas lembrou que há muito ninguém mais morava ali.

Então decidiu que tentaria sair sozinha mesmo, sem a companhia dos demais cativos, ainda que correndo o risco de ser castigada por seus captores. Já era noite. As algemas, apesar de já aderidas aos punhos, estavam corroídas pela ferrugem, então conseguiu removê-las, tracionando a parte serrilhada da pulseira metálica. Destrancou a porta, silenciosamente, e desceu os dois lances de escadas que lhe separavam da rua.

Abriu a porta e sentiu o vento quente de janeiro. Olhou para os dois lados e viu que muitas famílias pareciam retornar de seu veraneio. Sabia que aquelas pessoas não poderiam lhe ajudar caso fosse encontrada por eles, mas sentiu-se suficientemente segura para sair. Colocou o corpo para fora, fechou a porta cuidadosamente e começou a caminhar.

Já era noite. Chegou no mercado da esquina e a fila estava grande, o que lhe causou extremo desconforto, pois vira dois suspeitos no caminho: poderiam lhe causar problemas no retorno. Pediu três pães para levar. O atendente demorou-se na entrega do dinheiro, então pediu para ficar com o troco, já que tinha pressa em retornar. Acelerou o passo e atravessou a rua para desviar dos suspeitos que vira no caminho de ida. Não estavam mais lá.

Estendeu a mão para alcançar a maçaneta o mais rápido possível. Entrou e fechou a porta atrás de si. Fez o sinal da cruz, agradecendo por ter chegado até ali. Subiu as escadas, adentrou a sala e vestiu as algemas. Agora em paz, comeu a janta que havia comprado. Estava novamente onde seus captores esperavam que estivesse. Ligou a televisão para assistir às notícias do dia e, bebericando a xícara de café que havia preparado, contemplou as luzes da cidade pela janela.