Lauren Davi
O sono quentinho debaixo das cobertas estava muito bom, e lá fora ainda escuro. A neve caía como flocos de açúcar, e o vento corria pelas ruas como fosse o dono do lugar.
O alarme do relógio me desperta, barulhento. Sem pensar duas vezes, levanto-me num salto. Levanto-me, mas não acordo. Isso mesmo – estava na hora de sair da cama, mas era cedo para despertar.
Ainda no modo automático, com o cérebro em stand-by, dirijo-me ao banheiro, abro a torneira, a água que sai está perto do ponto de congelamento. Lavar o rosto não seria uma experiência agradável, mas paciência, pelo menos assim o cérebro acorda, no susto.
Apressada, apanho a mochila, calço as botas de neve e visto o meu casacão modelo esquimó. Desço as escadas rapidamente, sem fazer barulho. Um café da manhã rápido, estilo canadense – panquecas com xarope de bordo. Delícia.
Hora de sair. Luvas nas mãos, gorro na cabeça, cachecol cobrindo o nariz. Lá fora, Toronto despertava lentamente, como se a cidade inteira estivesse dando um grande bocejo.
Eu, como uma criança, caminho chutando a neve, brincando com aquela coisa branca tão linda que ainda era novidade para mim. Cruzei a Avenida Silverton, entrei na Rua Invermay e segui em direção à Avenida Wilson. Qualquer canadense que passasse por mim ficaria imaginando que tanta graça eu achava em ver a neve precipitando-se. Deveria ser tão divertido quanto ver a chuva caindo em pleno sertão nordestino.
O ônibus veio lotado. Desci na estação York Mills. O metrô também veio lotado. Na estação Eglinton, desço e encontro alguns colegas brasileiros, todos muito empolgados com a aventura do dia. Caminhamos juntos até a frente de nossa escola, onde alunos de todas as partes do mundo aguardavam o school bus amarelo que nos levaria até o Horseshoe Valley Ski Resort, na cidade vizinha de Barrie. E o vento soprava gélido, amortecendo nossas faces.
A viagem até Barrie foi tranqüila. Ao chegarmos à estação de esqui, um instrutor sobe em nosso ônibus e dá as primeiras orientações. Assustei-me somente ao pensar nos eventuais acontecimentos que levaram o resort a exigir seguro-saúde de todos que lá se aventuravam. Mas já que eu estava lá, iria encarar qualquer desafio.
O primeiro desafio foi calçar as botas de esqui, dois trambolhos cinza chumbo, pesados e nada flexíveis, seguidos de umas quinhentas tramelas para fechar a bota corretamente. Saí andando dura e desajeitada como o Robocop, passei em outra salinha onde me alcançaram os esquis e os ski poles (aquelas duas hastes que você segura na mão, que ora ajudam no equilíbrio, ora facilitam a queda).
Equipada, segui para uma aulinha básica. O instrutor experiente fazia tudo parecer muito fácil, mas tanto a Lei da Inércia quanto a força g pareciam conspirar contra todos nós. Sobre os esquis, andamos em círculos, freamos, demos a volta. Até ai, tudo bem.
O próximo passo era subir um declive, andando de lado no estilo caranguejo. Falar era fácil, difícil era coordenar-se. Mão direita, pé direito, mão esquerda, pé esquerdo, e aos poucos eu fazia progresso. No final do declive, outro instrutor experiente que esquiava de ré e de costas para o declive fazia-nos parecer otários – mal conseguíamos ficar em pé.
Mas a tarefa era simples: descer o declive, virar à esquerda, depois à direita, e frear. O japonês que foi primeiro estava indo muito bem até dar uma guinada em nossa direção e fazer um strike com a galera. E, para piorar a situação, tinha chegado minha vez.
Respirei fundo, e fui. Desci reto como um foguete, tendo pouco ou nenhum controle sobre minhas pernas. Meus esquis foram entortando para a esquerda, fui fazendo a curva. Atrás de mim, ouvia o instrutor gritar, “To the right! To the right!” mas eu continuava virando para a esquerda. O coração disparado já previa a tragédia. Um esqui entrou na frente do outro, dei um giro de 360 graus e fui de cara na neve. Fracasso total. E ainda por cima eu não conseguia levantar por causa do peso dos esquis.
Quando pensei que teria que refazer o exercício, olho para o instrutor com uma cara de ponto de interrogação, esperando que ele dissesse para eu voltar. Mas, para meu espanto, ele faz sinal de positivo com a mão e grita “Very good! Go ahead!”. “Como assim?”, pensei. “Eu desço rolando declive abaixo e ele diz que foi bom?”
Mais tarde, parto para a pista principal. Uma carona de teleférico até o início do declive parecia uma boa idéia. Junto com uma colega, subimos em uma daquelas cadeirinhas que nos elevavam acima dos pinheiros cobertos de neve. A vista era linda.
Com os esquis em posição, preparo-me para descer. Como já não bastasse a dificuldade da situação por si só, a cadeira do teleférico ainda dava um empurrão extra em quem descia dela. Mal encostei os esquis no chão e já escorreguei para o lado, dando um nó nas pernas e caindo de boca aberta na neve. Já era o segundo tombo.
Já pensando em qual seria o equivalente canadense a um tubo de Gelol, me preparo para a primeira descida. Foi então que inaugurei uma nova unidade de medida - Quedas por Metro. A cada dois metros uma queda bastante doida. A questão do seguro-saúde começou a fazer sentido.
Minha última queda foi a gota d’água. Caí de barriga na neve, que era dura como concreto, quase deslocando o ombro. Meus pés torcidos para o lado evitavam que eu me levantasse. Frustrada, zangada e morrendo de vergonha, fiquei lá deitada até que dois gentis esquiadores viessem me ajudar.
Auxiliaram-me a levantar e me ofereceram uma garrafa d’água. Agradeci, disse que estava bem e fiquei lá sentada com cara de tacho. Resolvi descer o resto do declive a pé, carregando nas costas os esquis. “Não acredito que desperdicei cinqüenta dólares com isso!”, esbravejei.
Depois de dar um tempo na lancheria, voltei com todo o gás, decidida a aprender a esquiar. E continuei caindo. Caí de lado, de bunda, de cara no chão, em cima de um colega, caí até quando estava parada no mesmo lugar.
Naquele dia, aprendi uma nova expressão idiomática. Toda vez que eu caía, algum infeliz passava do meu lado e dizia “You’ll get the hang of it!!” Eu não sabia que “pegar o jeito” seria tão doloroso. Porém, entrara em cena meu desejo de superação, e desisti de desistir.
No final da tarde, havia quem dissesse que eu já esquiava há anos. Eu mesma, a brasileira que vira a neve pela primeira vez, agora esquiando! Em alta velocidade, cortava a neve com destreza e, nem mesmo desacelerando, entrava novamente na fila do teleférico em um golpe só. E sem atropelar ninguém, como fez aquele japonês.
Talvez seja por situações como essa que dizem que brasileiro não desiste nunca. A regra é a persistência – sempre dar um “jeitinho”, ainda que seja no meio da neve, que agora tinha mais graça do que nunca.
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