Sandra de Almeida Silva
A criatura se aproximava cada vez mais. A menina tenta correr, sem conseguir sair do lugar, os pés afundando. Tenta gritar e seu grito não é mais do que um mover lento de lábios, sem ar, nem um sussurro. No meio da noite, ela acorda e sabe que o pesadelo apenas está começando, como das outras vezes.
O quarto não está escuro o suficiente para esconder os contornos da porta, onde os seus olhos se fixam como garras. Ela sabe a rotina das outras noites: primeiro o leve movimento do trinco, depois o vão começa a se abrir devagar, a silhueta escura entra e vai se avolumando sem rosto, os braços como amarras, o cheiro forte de cigarro enjoando o ar. A náusea tomando conta do corpo todo. Hoje vai ser diferente, ela diz baixinho, as mãos em concha sobre a boca para ouvir a própria voz.
Os pezinhos dormentes descem da cama e tocam nus o chão gelado e sujo. O corpinho em tremedeira se movimenta com a rapidez de um ratinho fugitivo, passa uma, duas, as quatro camas que a separam da janela e alcança o extremo oposto do quarto. Rosnam os primeiros barulhos do outro lado da porta, a vida batendo dentro do peito, ela faz força com os braços magrinhos, a janela faz um rangido e abre generosa uma fresta. O ar frio invade o quarto e traz com ele uma lembrança branca, nenhum endereço, só pincelada macia de afeto, sabor de leite morno. Ela olha para trás, ainda pode ver a porta mover-se, o sinal da cruz, um pulo apenas, e as asas do anjo abrem-se livres no vazio da madrugada.
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