Jussara Maria Lucena
- Diga-me o que aconteceu antes da batida – indagou o Comissário.
Ocupávamos um dos consultórios do hospital, vazio àquela hora. No quarto, metros adiante, minha esposa, em coma.
Como explicar? pensei. Como repetir as palavras de Alice? Você acaba arruinando sempre nossas festas por causa desse seu maldito ciúme! Nunca dei o menor motivo e você sempre vem com aquela história de que eu provoco, tomo conta da conversa, me atiro. E que é por isso que esse-aquele-aqueleoutro não param de me olhar. Alice falava aos gritos. Mas desta vez, Jerônimo, você passou dos limites. Sair da festa mal tinha ela começado! E me puxar daquele jeito para o carro! Se alguém nos viu, vou morrer de vergonha, seu idiota.
O fato é que eu tivera um acesso de ciúme. Mais um. E, como sempre, sem motivo, é preciso reconhecer. Mas não consigo ver Alice falar com outro homem; não suporto vê-la dando atenção a outro que não seja eu. A raiva me sobe à cabeça toda vez que um homem se aproxima dela, não importa seja amigo, parente, jovem ou velho. Sempre foi assim e assim continua sendo, mesmo depois de tantos anos de casamento. E repito: nunca, nunca mesmo, Alice me deu qualquer motivo para desconfiar dela. Mas como contar isso ao Comissário? Com certeza vai me culpar por tudo.
Naquela noite, ao chegarmos ao estacionamento, Alice arrancou as chaves da minha mão e entrou no carro. Tive que correr para ocupar o lugar do passageiro, pois percebi que ela ia me deixar. Ligou o carro e saímos a toda velocidade. Desviou os olhos da estrada, olhou para mim, e repetiu: idiota! E foi aí que aconteceu: o carro chocou-se contra uma árvore e nós, que não tínhamos colocado os cintos, fomos jogados para fora.
* * *
A sirene de uma ambulância se faz ouvir cada vez mais perto. Vozes baixas, algum gemido, o ruído de uma maca sendo arrastada.
Levei a mão ao bolso do casaco para pegar os cigarros, mas interrompi o gesto: lembrei que estamos num hospital.
Olho para o homem à minha frente cheio de hematomas, curativos, visivelmente abalado. Concordei em interrogá-lo aqui, pois ele não admite sair de perto da esposa.
Tanto tempo na profissão e ainda me comovo com os dramas e misérias humanas.
- Não tenha pressa – digo - procure lembrar exatamente o que aconteceu antes da batida.
Jerônimo Siqueira, este é o nome do interrogado, continua de cabeça baixa, calado.
Recosto-me na cadeira, cruzo as mãos sobre os joelhos e espero, paciente.
Finalmente, ele ergue a cabeça, e começa a falar:
- O senhor já deve ter visto muita coisa acontecer por causa de ciúme, Comissário...
Suspirei. Sim, eu sei muito bem o que são os ciúmes. Não fosse por eles, minha mulher ainda estaria comigo.
- Continue, por favor.
- O ciúme enlouquece as pessoas; e Alice é terrivelmente ciumenta. Eu estava no balcão, pegando uma bebida, quando ela se aproximou e me chamou para um lado. Vamos embora já, falou, não fico mais nem um minuto aqui. Quero ir para casa agora! Pensa que eu não notei que você não tirava os olhos daquela vadia de minissaia? Alice falava baixo; mas, pela sua expressão, percebi que não estava de brincadeira. Para não piorar as coisas, obedeci.
O interrogado se cala, e olha para mim com uma expressão perturbada.
- E depois, o que houve? – pergunto.
- Descemos as escadas e atravessamos o jardim até o estacionamento. Alice arrancou as chaves da minha mão e entrou no carro. Tive que correr para ocupar o lugar ao seu lado, pois vi que ela ia embora sem mim. Deu a partida e saímos a toda velocidade. Desviou os olhos da estrada e olhou para mim, ainda furiosa. E foi aí que aconteceu.....
* * *
O Comissário me pergunta se eu sei o que houve antes do acidente. Não, não vou falar. De jeito nenhum. Pelo que sei e tenho visto nos filmes, quanto menos a gente abre a boca, melhor. Não posso me envolver nesta história. Se eu falar demais, vou acabar me enrolando.
- ...
- Não senhor, não sei o que aconteceu antes da batida. Eu tinha saído para fumar um cigarro e aliviar um pouco a cabeça daquela zoeira. Muita conversa, música alta demais.
- ...
- Conheço, sim, Alice e o marido. Ela é minha colega de trabalho.
- ...
- Vi um casal saindo, mas não distingui quem eram as pessoas. Estava escuro e a iluminação do jardim é fraca. Foram direto para o estacionamento.
- ...
- Se discutiam? Não sei lhe dizer; ao menos eu não ouvi nada.
- ...
- Pouco tempo, talvez uns dez minutos depois. Quando ouvi o barulho do choque, saí correndo para ver o que tinha acontecido. Fui o primeiro a chegar ao local e chamei por socorro. A ambulância não demorou. O resto o senhor sabe.
Como falar ao Comissário sobre o horror que senti ao ver minha querida Alice naquele estado, coberta de sangue? Como dizer que tinha combinado com ela o encontro no jardim? E a tristeza que senti quando a vi ir embora, quase arrastada pelo marido? Não, não posso. Seguirei calado. Só não sei se vou conseguir continuar vivendo se perder Alice. Jussara Nodari Lucena - Porto Alegre, setembro de 2 012
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