Sobre listas e sapos*


A vida é sempre real, mesmo que dela duvidem os próprios fatos. 

 Ana Luiza Tonietto Lovato 


 Acontece que Laura era destas solteiras por convicção. Não lhe servia nada menos do que queria, exatamente como queria, e por isto portava uma lista com pré-requisitos. Condições a serem cumpridas pelos pretensos namorados, para que o primeiro encontro pudesse avançar para o segundo, para o terceiro e assim por diante.

Havia os que a julgavam prepotente. Laura não se importava. Era, sim, segura, pragmática e devota da busca da perfeição. Simplesmente estava sendo fiel ao seu estilo, a si mesma. E este era mais um requisito que o candidato deveria preencher: não se importar com aquela seleção. Que, no caso, Laura achava natural.

Podem imaginar, então, que ela se tornou uma solteira também pelas contingências. Muitos preencheram várias das pré-condições, mas precisaria juntá-los todos para que a lista se completasse. E não, Laura não estava disposta à poligamia.

Suas amigas não cansavam de tentar demovê-la desta estratégia que só faria mais improvável o aparecimento do príncipe. E por isto, justamente por isto, é que mais ainda Laura se apegava às suas exigências. Ser confundida com uma que aguarda o príncipe? Ela, Laura, tida como alguém que pudesse ter tais feéricas esperanças?

E a vida seguia seu curso sem que Laura confessasse qualquer descontentamento. Mantinha-se convicta, mesmo contra todas as previsões. Nada a demoveria da certeza absoluta a respeito de suas seletivas atitudes. Até que um dia, vejam bem, Laura caminhava pela Rua da Praia, passando em frente a uma confeitaria a menos de duas quadras da Av. Riachuelo. Rua improvável da sua rotina, onde estava apenas para uma jornada incomum de trabalho. Zanzava por ali conduzida pela despreocupação de quem está aproveitando o intervalo do almoço para esticar as pernas, já que a chuva havia dado uma trégua.

Foi quando avistou o sapo. Vinha da direção oposta e a contemplou frente a frente. A distância entre eles composta por apenas alguns metros. Laura, tomada de susto, em um ímpeto atravessou a rua, seguida pelos esbugalhados olhos do anuro. Na outra calçada, procurou no Google, com a rapidez que as circunstâncias permitiam, todas as informações que poderia obter a respeito deste anfíbio. De onde estava, escutava com nitidez assustadora os sons que ele emitia, sendo desnecessário olhar para saber que ele continuava ali.

“Ciclo vital dividido em aquático e terrestre, desaparecendo a dependência da água na fase adulta. Apesar de possuir pulmões, a maior parte da respiração feita por trocas gasosas, através da pele.” Certo, isto explicava o sapo em plena rua, talvez em busca da umidade ainda retida da chuva, que há pouco havia cessado.

Provavelmente oriundo das margens do Rio Guaíba, talvez tenha chegado até o centro da cidade cumprindo uma rota migratória, em busca de algum plausível local para a reprodução. Mas o Rio Guaíba não estava assim tão próximo assim... não para um sapo... e ali, lugar plausível, em plena agitação do centro?

O fato é que lá estava ele, do outro lado da rua. O dorso coberto por uma pele mesclada de verde e marrom, verrugosa. A parte inferior do corpo quadrado exibindo uma tez mais lisa e clara.

Vejam, tudo isto cabia nas considerações científicas que Laura recolheu da Wikipédia. Apenas um detalhe se fazia díspare. O sapo, este que acabo de descrever, em vez de estar rente ao chão sobre os membros posteriores dobrados e fisiologicamente qualificados para a locomoção aos saltos, se encontrava sabem como? Caminhando! Sim, caminhando. Nas duas patas traseiras, os membros desflexionados. Os superiores, mais curtos, estendidos ao longo do abdômen, fazendo as vezes de braços.

Podem imaginar agora o tamanho do susto que fez Laura trocar de calçada? E mais, o quanto ninguém, nunca, acreditou que isto tenha acontecido? Um sapo caminhando, em franco desafio à própria natureza?!?!

É, não houve quem afiançasse este acontecimento e por isto Laura cansou de tentar tornar crível sua aventura em frente à confeitaria da Rua da Praia. Desistiu de falar ou comentar o assunto, dada a reação irônica de todos, até mesmo das amigas que acreditavam em príncipes aflorados de sapos, após um encantado beijo.

O único resquício desta história foi o fato de Laura ter sido vista várias vezes caminhando por aquela rua do Centro Histórico, sempre nos dias chuvosos.

E sobre a aliança que apareceu no anular da mão esquerda, nem mesmo os íntimos tinham qualquer conhecimento de como foi parar ali. Só o que diziam é que quando ela era inquirida a respeito da tal lista de pré-requisitos, respondia com uma amnésica expressão:

- Lista? Que lista?

 *Conto premiado no concurso Prosa na Estrada, do IEL - Instituto Estadual do Livro do RS em parceria com a AGES

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