Nei Rafael Filho
Todas as antenas do país transmitiram a voz do Presidente. O sinal enviado às tvs era sonoro, sem os números da contagem regressiva. Na tela, apareceu o Alvorada, a bandeira. Uma voz solene anunciou: Vai falar Sua Excelência, o Presidente da República.
De terno impecável e cabeça baixa, aos pigarros ajeitou a gravata. Falou de frente para a câmara.
- Chegou a mim a confirmação de algo inédito, percebido há dias pela defesa civil. Essa notícia foi autorizada pelo Chefe de Estado.
Pelo tom da fala, o país silenciou para escutá-lo. De testa suada e franzida, o discurso continha subtextos. De olho na Tv, o barman parou de enxugar a louça. O chofer fechou a janela, colado no rádio. Na vizinhança, murmúrios anunciavam boatos de um disco voador. O barbeiro, de tesoura em riste, supôs um meteoro do tamanho do Maracanã.
- Li uma vez, faz tempo, numa revista de ciência. Uma pedra enorme vai se chocar na Terra. Já aconteceu antes e acabou com os dinossauros.
O Presidente prosseguiu:
- Por favor, eu pediria para abrirem uma revista, um jornal, o que estiver à mão.
Barney, o caçula dos Lima, fez o que se pediu.
- Mamãe! Olha meu livro dos Três Porquinhos! As frases! Suimiram!
No país e no mundo milhares de mães foram à mais próxima estante de livros.
As letras desapareciam do papel numa velocidade espantosa, como se roídas por algum tipo de traça.
De novo o Presidente falou:
- Nossos computadores também foram atacados. Mantenham a calma.
- É o fim do MSN! Isso não está acontecendo! – exclamaram aos gritos, desesperados, os adultos, os adolescentes e a segunda infância.
Multidões foram às ruas, atirando para o meio fio, coleções, revistas, jornais. Bancas e livrarias, destruídas. Ao compulsar encadernações encontravam apenas fotos. O escrito ficou despido de qualquer impressão, das letras e dos números.
Escolas pararam de funcionar. Faculdades interromperam seus bacharelados.
Noutro pronunciamento, a autoridade anunciou:
- O próximo passo será formar diretrizes.
Mas ninguém prestou atenção. Corriam enlouquecidos, tropeçando em leptops abandonados pelo caminho.
A maneira de pensar e agir dos homens mudou. Surgiu um novo renascimento, o da memória. O ensino, da boca para o ouvido. As frases eram possíveis somente nos palcos e estúdios. Não escritas. Na tentativa de reescrevê-las no papel, ao se formar, duravam um ou dois segundos. Apenas.
- Saudades dos escritos – diziam em lamurias.
Ou com muito arrependimento:
- Se voltar ao normal, devorarei o “Ulysses” de James Joyce até o fim.
A televisão, durante as 24 horas, reprisava maestros regendo sem a partitura e muitos shows, centenas talvez milhares.
Um dos espetáculos, um concurso de calouros, era o “De quem é a frase?“, com crianças aparecendo no palco vestindo roupas em forma de números ou letras. Em grupos, reuniam sílabas, palavras e sentenças. Atentas ao contra-regra exaltado e, a seu comando, eram substituídas por outras, como peças de dominó, sob a repetida ordem: “Mudemos o uniforme: e já!”. Elas teriam de dar lugar às outras recém uniformizadas como vírgulas e pontos de exclamação para o texto recitado do romance “O Legado de Humbold”, de Saul Bellow..
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