Luciana Sacramento Moreno Gonçalves
O Carnaval de Salvador sempre foi uma expressão máxima de suas classes populares e seu encantamento vinha, sobretudo, dessa força genuína. Todavia, a sua transformação em bem de consumo começou a atrair os olhares e interesses da indústria capitalista.
Na Bahia, tal atenção forneceu uma renda vultosa a muitos artistas, políticos e empresários, mas se transformou num ciclo que, praticamente, asfixiou o que dava vida ao evento. Empresários começaram a “camarotizar” o Carnaval, ou seja, investiram pesado em estruturas físicas com caros restaurantes e serviços que iam desde cinemas a massagistas, em espaços privados, com sistemas por eles denominados de all inclusive, a preços exorbitantes. A maior contradição é que, apesar de ambientados no circuito carnavalesco, os clientes desses locais se enfurnavam neles e mal assistiam àquela que um dia fora intitulada de maior festa popular de rua do mundo.
Outro fenômeno era o interesse de cantores e bandas baianas, profissionais mais do consumo do que da arte, em integrar o staff dos camarotes, legando a festa atrações desconhecidas e/ou sem o reconhecimento popular.
Simbolicamente, a violência é maior. O povo, que inventou a festa e que dá o tom dos ritmos e das canções, estava mais na margem do nunca. O sonho da felicidade, ainda que efêmero, havia sido alijado para os mais pobres. É óbvio que os governos baianos (municipais e estaduais), responsáveis pela festa, eram coniventes com tudo isso. O pior, a população baiana, sem condições de pagar pela inclusão em tais ambientes privados, ficava espremida nas ruas, sem sequer ter onde brincar, porque a abundância de camarotes gerava uma diminuição do espaço físico nas avenidas.
Atrelado a esse contexto, para os blocos afros, afoxés e aqueles que oportunizam espaços às classes populares era reservada a madrugada como único horário disponível de apresentação. As falas sobre segregação e até apartheid no Carnaval baiano apareciam nos principais veículos de comunicação do país. Nomes como Ivete Sangalo, Bell Marque e Durval Lelis defendiam que o evento deveria ser in door. O argumento maior para o fenômeno era que as classes média e alta temiam a violência das ruas. Portanto, era em nome da segurança individual e coletiva que as pessoas pagavam convictas por este serviço. O pretexto, na verdade, constituía-se em uma tentativa de tornar a festa mais rentável para alguns; em suas entrelinhas, o interesse dos clientes e empresários era elitizar o Carnaval baiano. E no Brasil, e principalmente na Bahia, isso significava embranquecê-la. Significava vendê-la para os turistas.
Entretanto, outra transformação começava a acontecer. Observava-se que os soteropolitanos começaram a debandar da cidade no período carnavalesco. Abundavam as meninas de salto agulha e cabelo escovado, fardadas dos abadás dos camarotes, ladeadas de garotões malhadões, pousando mais para as fotos das redes sociais do que se entregando ao êxtase da festa ou à “chuva, suor e cerveja”, cantada por Caetano, ocorrendo, assim, seu quase total esvaziamento.
Assim, quanto menos os soteropolitanos procuram a festa, mais artificial ela se torna, e aí, acaba por desagradar aos turistas também. Sem compradores de dentro ou de fora, os preços passam a ser menores. Decaem-se as vendas e a mesma indústria que praticamente destruiu a festa inventa estratégias de reanimá-la. Pouco a pouco, o Carnaval soteropolitano tem dado ares de fênix e evidenciado o seu tom educativo, pois, ao perder seu brilho, ao decrescer a participação popular e, proporcionalmente, aumentar os índices de violência, forçou muitas mudanças.
Muitos blocos carnavalescos começaram a deixar de usar as cordas; o ministério público tem acompanhado e buscado evitar o péssimo tratamento dessas empresas aos cordeiros, uma espécie de seguranças da festa. Ocorreu a paulatina diminuição do número de camarotes e também um maior controle dos espaços da rua que eles ocupam. Hoje existe a revitalização de alguns circuitos, o retorno do Carnaval nos bairros populares com atrações localmente conhecidas, o incentivo a participação dos blocos afros e de índios em horários diurnos.
Esse conjunto de ações ocorreu graças a pressões populares e à união dos poderes públicos e privados. Isso diminuiu os índices de violência e fez com que os soteropolitanos voltassem à festa. Mas há ainda muitas mudanças a serem implementadas. A principal delas nem é na festa; é nas relações sociais que imperam no país, pois a desigualdade que se evidencia no Carnaval de Salvador faz parte da histórica conjuntura brasileira em que as classes trabalhadoras utilizam, às vezes, servilmente, suas forças para sustentar as regalias de uns poucos endinheirados e poderosos.
No mais, a lição que fica dessa história de ascensão, queda e tímido renascimento de uma festa popular tão rica quanto o Carnaval baiano é que o povo, o ator principal da festa, tem poder. Sem sua participação zombeteira, intensa, que inverte papéis (de gênero e de classe, especialmente), sem a possibilidade da catarse e do sonho que o evento evoca esvazia-se seu sentido. Fica a lição a ser aprendida: este é um evento pedagógico, que nos evoca o poder popular, através da arte e da festa, e assinala o quanto tais manifestações nos ensinam a conviver com a diversidade, nos exortam a vivenciar o corporal, sem temer o suor, a carne, a sensualidade.
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