Papai casou com mamãe

Nei Rafael Filho

Hortencio era casado com Cecília. Do casamento nasceram Paula e Ricardo. Hortencio trabalhava como consultor financeiro e Cecília representava uma empresa multinacional de purificadores de água. Por mais que se esforçasse, nos últimos anos Hortencio passou a ganhar salário menor ao de Cecília. Essa mudança não impedia a vida simples no lar, a educação dos filhos e o carinho. A mulher, no entanto, o traiu com o dentista, o Dr. Alexandre. O marido soube através do celular da esposa. A caixa de recados e as ligações eram espaços exclusivos de comunicação íntima com o cirurgião maxilobucofacial. Por que suspeitar da esposa? Sua desconfiança aconteceu tão logo iniciado o tratamento dentário, e em razão do repentino silêncio reinante em casa, semelhante ao das emboscadas em manobra militar. Foi a sensação de mal-estar, dentro de casa, percebida pelo marido traído. Ele recordou um domingo e o ensinamento de seu pai, no Parque Saint’Hillaire, um lugar de lazer situado em Viamão: o perigo potencial dominante na quietude tumular às margens de um rio. Sob o frescor da memória o esposo magoado reconstruiu a cena, após um churrasco familiar. O sr. Narciso e ele estavam agachados na frente do lago do parque para lavar a louça, enquanto sua mãe tirava um cochilo.

- “Olha filho. Está tudo muito quieto” – alertou o pai, em postura vigilante.

- “Sim, pai” – respondeu o garoto, observando-o com os talheres e em mãos ensaboadas. Ele saboreou aquele momento escondido no tempo como se acabasse de acontecer, revivendo o olhar de seu pai, olhos atentos, mirando à outra margem do lago.

- “ Jamais esqueça Hortencio! No exército a gente aprende que quando a área aquartelada está muito quieta, isso pode ser sinal de emboscada.”

De volta à realidade, marido e mulher, seguiram em frente com seus afazeres profissionais e da lide doméstica. Ele a perdoou, evitou tocar no assunto e as crianças cresciam. Depois, numa festa oferecida em casa para alguns amigos e parentes da esposa, Hortencio se ausentou por uns trinta ou quarenta minutos. Foi ele o churrasqueiro, e após avisou da rápida ducha para almoçar. Mas a demora fez os convidados perguntar por ele. Onde teria ido? Ao aparecer do andar superior, descendo os degraus da escada de madeira, todas as pessoas à mesa e no meio da refeição tiveram uma surpresa. Chocadas, assistiram o retorno de seu anfitrião vestido com roupas de mulher, as roupas de Cecília e inclusive de salto alto.

- Fiquem à vontade, continuem almoçando, estejam tranqüilos – disse em voz pausada.

- Como assim, ‘fiquem à vontade!?’ – indagou a anfitriã, apavorada – Isso é alguma brincadeira, Hortencio?

Seu cunhado, dois casais de amigo, e os filhos se puseram a rir. Ele calmo e sereno sentou à mesa e comeu uma porção de salada e um pedaço de frango assado.

Puxou conversa, falou no tempo, se ia chover como anunciado na Tv Com, e se o Grêmio se daria bem no Grenal da próxima quarta-feira. Servindo um copo de refrigerante diet, perguntou sobre a nova escola de Valéria a filha do amigo Antenor. Antenor, era seu convidado especial sentado à sua direita, porque elegera-se suplente a Vereador.

Ao anoitecer, todos os convidados retornaram às suas casas. O casal foi descansar nos aposentos. Cecília não dirigiu a voz ao marido. Ricardo, indignado, entrou sem bater para questionar se o seu pai dormiria de calcinhas ou cuecas. E bateu em retirada aos gritos.

- Meu filho. Não vou deixar de ser o teu pai... - atendeu evasivamente a crescente aflição do adolescente ainda atrás da porta.



Na manhã seguinte, Hortencio foi trabalhar. No escritório todos repararam o homem vestido de mulher, usando uma peruca castanha, amarrada com um laço amarelo. O segurança pediu a identificação funcional para certificar-se se aquele era mesmo o funcionário mais antigo da seção. O chefe, boquiaberto, pediu uma conversa à porta fechada entre sisudos analistas aturdidos do surpreendente surrealismo. O chefe, enfático, chamou-lhe atenção:

- Não sei qual é o motivo da brincadeira, Hortencio. É bom ir parando!

O advertido com a mão à maçaneta, a porta entre aberta, todos escutaram a conversa. Tranqüilo, pediu para sentar e um café, com pouco açúcar.

Os dias sucederam as noites, semanas e meses, e o marido de Cecília permanecia vestindo as roupas da mulher. Ela protestou. Impaciente, ameaçou autoritária:

- Vão dizer o quê? E as crianças? Como explicar na escola? Os vizinhos estão pensando que eu moro com uma mulher! E trate de comprar as tuas roupas! – berrou ao tomar de volta o sutiã de cetim presenteado no Dia dos Namorados do ano anterior.



Hortencio fez novas aquisições no Shopping. Trocou o guarda-roupa. Freqüentava o supermercado vestido de mulher. Estacionava no posto de combustível para comprar chiclete na delicatessem, dizendo bobagens e de brincadeiras com a menina do caixa, como sempre fazia, embora vestido de mulher.

- Sabe, filha. Chiclete é bom para tirar a papada. Estou horrível, não acha? Vou para faca em breve! Quero tirar esse papo de pelicano! Por hora fico no chiclete.

A moça, muito mirrada, usava lentes fundo de garrafa, sonhava ser modelo, fez questão de não cobrar a guloseima. Se aproximou do cliente travestido para dizer com meiguice:

- Não liga Sr. Hortencio - consolou Armínia, a querida atendente das lentes grossas – As pessoas não entendem nossas crises. Vou apoiar o senhor.



À mesa, no jantar, a família estava reunida. Hortencio vestia um tayeur lilás. Ricardo ficou de costas para o pai. A filha, Paula, de braços cruzados o observava com ar de respeito e dó. Cecília, mastigava silenciosamente. Ela, de pernas cruzadas, elegante, sorvia o suco de limão. Todos sem dizer uma palavra.

Mas Hortencio arriscou quebrar a monotonia dos comensais.

- Hoje tive um dia e tanto...

- Papai! Quando vai parar com essa palhaçada? – indagou Ricardo, aos protestos - Sou teu único filho homem! E pré-vestibulando a uma vaga em Publicidade e Propaganda da Universidade Federal!

Cecília pediu calma. Prometeu ter uma conversa com o marido e tudo voltaria ao normal.

No quarto dos esposos, ele a convidou para tomar banho juntos.

Depois trocaram carinhos.

Na consagração do amor conjugal, ela o abraçou com ternura. E o beijou.

- Hortencio, – em voz maviosa com a qual um dia conquistou o futuro consorte – Eu serei promovida. Assumirei a divisão da L’Aqua Viva do Brasil.

- Parabéns, minha querida. Sucesso.

Na manhã seguinte o pai pediu para levar as crianças adolescentes para a escola. Elas recusaram. Na ocasião estava trajando um terninho de casemira salmon, um par de Germons e meia de nylon verde erva do campo.

Ricardo saiu de casa explodindo. Paula gritou, finalmente, o engasgado há anos, a essência de um protesto pessoal. Desafiou não o pai, e sim o seu desconforto pessoal e detestável.

- Você não gosta de ser homem e pode se transformar em mulher! Mas eu tenho de suportar esse nome horrível, Paula!

Hortencio interpelou:

- Um momento filha! Eu não sou mulher. Eu sou homem! Estou tentando ver como as coisas de outro jeito. Vou experimentar, viver uma nova fase, entende?

- Entende o quê?! Bobagem! Você engana direitinho! Minha amiga, a Sabrina, espalhou na escola que você é mais bonita que mamãe!

Ao escutar, de pronto se ergueu da cadeira para se olhar no espelho. Com um alfinete de marfim sintético espetava a peruca para dar volume.

- Filha, meu encanto – mirado-se no espelho - porque odeia o nome que te demos?

Paula saiu da casa, chorando.

- Vou de ônibus! Me deixem!

- Mas que nome você gostaria, filha?

Ao bater o portão, na volta da esquina, gritou:

- Queria me chamar de Marilda! Queria poder escolher esse nome!

Na empresa onde o pai de Paula ainda exercia as atividades de analista financeiro, pouco antes do coffebreak, o chefe tornou a ameaçá-lo.

- Olha, sei que não é fácil para ninguém. Mas se continuar com esse cacoete, essa loucura... vou ter de rebaixá-lo. Ou tomar medida pior.

Hortencio, tranqüilo disse não se importar.

Na acarpetada sala, o chefe, enfim, após obrigá-lo a assinar uma advertência, convidou-o para entrar, servindo-lhe café.

- Veja bem, analista Sênior! Você não tem ambição? Aqui tem tudo para crescer! Uma promoção!

Rigorosamente vestido, perfumado, pernas depiladas e maquiagem perfeita, escutava o patrão com brilho nos olhos ressaltados. O rimel valorizou seus cílios.

- Vamos receber dentro de alguns dias uma comissão japonesa. Vou ter de dispensá-lo enquanto estiverem em nosso escritório. Esse povo é rigoroso quanto o papel desempenhado pelas pessoas.

De volta ao lar, a família voltou a se reunir à mesa.

Ricardo foi o primeiro a falar.

- Mamãe ficou importante, papai. Ela terá um chofer. Será a nova diretora da Aqua! Um chofer só para ela!

Paula, quieta, mal tocou no jantar.

Cecília, ofereceu uma taça de vinho ao marido. Era quinta-feira, e nesse dia, bebiam vinho. Para brindar.

Hortencio, após um gole, pediu emprestado o suéter azul turquesa.

Ricardo, com o sangue subindo, socou à mesa.

- Papai! Quando vai parar com isso? Quando? Que situação! Conheci uma garota. Queria trazê-la aqui em casa, apresentá-la... Como é que vai ser!



Cecília nada disse. Tinha o olhar inquisidor para o marido. Ele, imparcial, sereno. Experimentou filosofar:

- As pessoas não significam as roupas que usam.

Pediu licença e deixou a sala.

Numa noite de sábado Paula levou Tarciso o namorado, até a porta da frente. O rapaz tomou um susto ao ser recepcionado. Ela avisou das últimas mudanças. Hortencio o convidou para entrar.

- Ele é meu pai, Tarciso. Papai casou com mamãe. Sou a filha dele.

O rapaz, vacilou se entraria ou não. Queria acreditar ser a situação uma brincadeira de mau gosto.

- Entra logo meu rapaz! – insistiu em gestos airosos com a mão.

Paula encarou o rapaz como se estivesse dizendo: “ Tudo isso que vê é uma prova de amor. Se me ama, entra e cumprimente meu pai.”

No próximo sábado Ricardo trouxe a namorada Rosalva.

Ela entrou rindo, dando beijos, apertando as mãos de todos: “Tudo é cultura, uma questão de aceitação de rituais e Ricardo era muito certinho”. Expressou simpatia por Hortencio e contou a história de sua tia Eulália, rica e muito bem casada, um dia resolveu largar tudo porque estava apaixonada por um caminhoneiro.

- Jamais a perdoaram! Eu nem soube de nada, era um bebê na ocasião. Me contaram essa história assim como se vende o peixe. Eu nem sei dos detalhes.

Cecília queria saber qual era a ligação entre Hortencio e a história da sua tia.

- Não é isso... – expplicou - É que as pessoas arrumam, fazem as coisas para serem imutáveis. O sr. Hortencio é assim, ou ficou desse jeito e ponto final! Minha tia preferiu as estradas a uma mansão com piscina!

E desatou em gargalhadas. Aliás, isso contagiou a todos. Ricardo, tenso, riu. Questionou-a:

- Como agiria se de repente decidisse usar roupas de mulher?

Respondeu sem o menor esforço:

- Olha, para satisfazer a pergunta, terei de ser honesta. Gosto de algumas roupas masculinas. Para mim, tudo bem. Se um dia o teu desejo for usar roupas femininas, é só usar. Use e abuse.

A sonhada ascensão profissional de Cecília aconteceu. A nova Diretora realizou viagens internacionais e quando possível, o marido acompanhava. Ele permaneceu como analista financeiro, sem promoção. Os filhos iniciaram às faculdades. Paula foi morar com o namorado e Ricardo contemplado com um intercambio cultural. Cecília, rodeada de afazeres profissionais, no sossego do lar tinha o notebook aberto, rodeada de relatórios, tabelas, gráficos e o celular. Numa noite de inverno, de ventania gelada, pediu ao marido para usar suas meias, “aquelas de lã, do tempo das roupas de homem”. Todas as roupas do passado, as vestes de Hortencio, ficaram guardadas. Macias, novas e cheirosas, vestiu as meias. Gostou muito. Na manhã seguinte, solicitou outra peça, o pulôver azul e a parte de baixo do abrigo, guarnecido numa caixa havia alguns anos.

Na segunda-feira, pediu uma camisa de lã. Ninguém notaria a roupa masculina porque usaria por cima uma blusa de tricô.

Na terça, calçou suas pantufas de lã, para apanhar o jornal no jardim. Para sair pela manhã, na quarta, de notebook e tudo, experimentou a jaqueta de couro. Mas deixou-a de lado, para o dia seguinte. Ao invés, solicitou uma de suas camisas italianas listradas. A de listras verde. E também uma gravata. A de seda sete fios. Tudo ele alcançou. Trajada, foi ao espelho.

- Ninguém vai reparar, querido. Nós temos um manequim parecido. Que tal? Suas roupas me assentam?

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