E se não fosse um lobo mau?

Carol Silva




Chapeuzinho Vermelho não era seu verdadeiro nome. Só era chamada assim por causa daquela capa medonha que a mãe fazia ela vestir toda vez que saia de casa. Chamava-se Leila, um nome que a agradava muito, mas que ela só ouvia quando a professora fazia a chamada ou quando conversava com sua avó. Usava a capa para ir à escola, ao armazém e a casa da vovó, os únicos três lugares que a mãe lhe permitia ir sozinha.

De todas as atividades, a que mais gostava era ir visitar sua avó e fazia isso todos os sábados de manhã, levando bolinhos feitos pela sua mãe. Era sagrado, todo sábado, sem falta. A avó estava sempre pronta para recebê-la. A mesa do café posta com aquelas xícaras de porcelana que ela adorava, os talheres antigos de prata e a toalha de renda branca tão cheirosa. Ficava horas ouvindo as histórias da vovó sobre sua viagem de navio, quando veio da Europa sozinha para o Brasil, ou de quando lutou em defesa dos direitos das mulheres. A vovó também falava do avô, um homem muito bom, que havia sido seu maior encorajador para que ela estudasse e tirasse seu diploma. Ficava imaginando como era esse homem, que ela nem havia conhecido, pois morrera muito tempo antes de ela nascer. Às vezes, Chapeuzinho sentia pena da vovó, vivendo naquela casa, sozinha, tão afastada de todos. No entanto, a vovó sempre dizia gostar muito do seu estilo de vida.

Um sábado, Chapeuzinho amanheceu com uma indisposição estomacal e não pôde fazer sua habitual visita. Passou o dia de cama, se recuperando. No domingo, acordou bem e implorou para sua mãe que a deixasse ir até a casa da vovó, que deveria estar profundamente preocupada, já que não havia aparecido no dia anterior. Depois de muita argumentação, a mãe deixou. Preparou a cesta com os bolinhos e pediu que a filha não demorasse. 

Quando chegou a casa de sua vovó, Chapeuzinho empurrou a porta, que estava sempre aberta. Ficou muito feliz quando viu a mesa já posta para duas pessoas, como se a vovó já imaginasse que ela viria. Foi entrando e chamando sua avó. A casa era muito pequena, então ela só podia estar no quarto. Empurrou a porta do quarto, fazendo um rangido. Ao mesmo tempo, Chapeuzinho viu um vulto saltar da cama e parar ao lado da janela e quando olhou para a cama viu sua avó cobrindo o corpo até a altura do nariz. Olhou para o outro lado e viu um senhor, sem camisa, de calça jeans, sorrindo meio sem graça. Chapeuzinho deu alguns passos para trás, ainda observando a cena e depois correu em direção a sua casa.

Enquanto corria, uma sombra avermelhada a perseguia, efeito da sua capa esvoaçante. Ela sentia algo lhe apertando, mas não sabia ao certo se era dentro ou fora da garganta. Decidiu desatar o nó da capa e soltá-la de seu corpo, deixando para trás o pano encarnado no meio da floresta.

E se você acreditasse




Rafa Fontes

Você soube um mês antes. Pediu as contas no emprego e foi para casa ao meio dia. Brigou com a esposa, que não acreditou naquela história.Você sempre disse que ela devia crer mais na palavra, mas não adiantou. Separou-se, deixou-a em casa com o filho e, em uma semana estava em um kitnet alugado. Triste, você se despediu do menino como se fosse culpado por ter reproduzido, por tê-lo colocado nesse mundo, como manda o livro, para ele viver apenas até ali.

Em duas semanas você vendeu seu carro, passou a andar de transporte público.
Queria morrer sabendo o que passam os fiéis mais pobres nas ruas da cidade. Em vida, jamais. Admirou, como ainda não havia feito, a vista urbana do lugar em que você morava há anos. Descobriu bairros, prédios, parques, cores, pessoas, animais. Você havia ficado rico por ter trabalhado a vida toda, mas não conhecia nem metade dos prazeres de sua sociedade. Ali, desconsolado, se perguntava por que.

Em três semanas, você começou a gastar tudo o que tinha. Se é para morrer, vamos morrer feliz. Comeu todas as porcarias que seu estômago fraco evitava, andou por todos os lugares que seu medo impedia, descobriu pessoas de paz onde só imaginava terror, pagou prostitutas que jamais pagaria e transou com mulheres que jamais transaria e passou a noite em lugares onde nunca deitaria.
Embriagou, brigou, roubou, endiabrou.
Sangrou, sarou, chorou, rezou.

Na última noite vomitou seus sonhos em qualquer bar, acompanhado de qualquer um que esperava, coincidentemente, aquele mesmo meteoro.

- Você também acredita – você perguntou com a língua anestesiada.
- Claro que sim - respondeu o outro, cuspindo uma saliva alcoólica – Aquela merda vai cair e destruir tudo o que conhecemos.
- É por isso que estou aproveitando meus últimos dias assim – você completou, dando um soco no balcão e pedindo ao garçom para encher mais uma vez o seu copo – Construí uma carreira segura, uma família linda e temente a Deus, uma poupança gorda... e pra quê? Pra acabar tudo assim, com uma maldita pedra explodindo o planeta. Bela bosta! De que me serviram todos os mandamentos do Senhor?
- Pois é. Eu vou acabar a minha cachaça aqui e vou correr para a minha família. Apesar de tudo, nem Deus me faz ficar longe deles essa noite.

Você, descrente com a vida, esperançoso com a morte, preferiu morrer só com a sua crença.
Ajoelhou, rezou, aguardou a hora escura da madrugada em que seriam atingidos. Porém, amanheceu. Ouviu, da kitnet no nono andar, os carros, as ambulâncias, as vozes, a cidade, o mundo, a vida, mas não ouviu meteoro algum. Se passou, passou longe.

Você ponderou. Olhou no celular a conta bancária vazia.
Sentiu uma forte dor no estômago e sentiu seus órgãos arderem e coçarem enquanto urinava.
Lembrou da esposa e do filho, abandonados.
Na janela, olhou para baixo. Subiu no parapeito e deixou-se cair enquanto pensava: E se eu for meu próprio meteoro?