Verdades e Promessas Quebradas

Gustavo Lopes




Assim que chega ao shopping, Nicholas liga para seu amigo Eduardo. 

- Já cheguei. Onde você está? – começa a andar pelos corredores apreciando as vitrines.

- Nossa, perdi a hora. Lembra como são as coisas nesta época aqui na empresa? Acho que chego em meia hora.

Me espera. Foi foda hoje. Vai para uma livraria. Tu gosta, né?

- Cara, faz um tempo que não nos vemos e quando temos a chance... – interrompe a fala ao perceber de longe uma mulher dobrar em direção à praça de alimentação. O pouco que percebeu era suficiente para identificá-la. Uma história inacabada. - Cara, depois ligo para você. Tenho que correr.

- A esta hora? O que você está pensando? Nic? Nicholas, você está ai?

Os consumidores no shopping não estão preparados para um adulto correndo durante as compras de Natal. Exige uma certa destreza não chocar nas pessoas. Mas Nicholas tem medo que ela entre em alguma loja, que encontre alguém. O tempo está contra ele.

Nicholas controla a respiração para não ofegar e cadencia o passo para alcançá-la antes que chegasse à praça de alimentação. Uma porta separa os dois ambientes. Ela está a poucos passos da porta, ele calcula que chega antes dela. Reduz a passada e amortece a pisada, para com o impulso do movimento alinharem os corpos. Ela não sabe, mas está em uma corrida.

Nicholas estica o braço e abre a porta para ela. Surpresa, a mulher vira o rosto pra agradecer para o estranho gentil, mas perde o fôlego por um instante ao ver o rosto familiar desejando-lhe Feliz Natal.

- O-obrigada!

- Veio jantar?

- Foi. Tá tão corrido. Tava ajudando a mamãe e tá tudo tão cheio que vim até aqui comer algo.

Enquanto caminham pela praça de alimentação, ele sugere:

- Ravenna, vamos comer na varanda, perto do cinema. 

Ela vacila um pouco e propõe com um tom de voz baixo:

- Pode ser... Naquele japonês?

- Então, me conta, onde você vai passar o natal? – ele tenta quebrar o gelo daquela caminhada.

- Vou para casa de minha irmã. Minha família toda vai. E você?

Ele não responde. Chegam ao restaurante e Nicholas comenta:- Não sabia que você comia sushi agora. Mudou um pouco.

- Por favor, paguem no caixa. A garçonete leva até a mesa - diz o sushiman, depois de escolherem. Nicholas se antecipa ao caixa e entrega seu cartão.-Estamos juntos.
- Vamos pagar separados.

- Vamos fazer assim. Você paga o jantar do próximo natal. 

Ela assente com a cabeça, esboça um sorriso com um dos cantos da boca. Nicholas escolhe uma mesa na varanda do corredor do shopping.  Ele puxa a cadeira para que Ravenna se sente. Antes de ir para seu lugar, ele desliga seu telefone. Ficam de frente um para o outro. 

- Me conta sobre o seu trabalho. Na última vez que nos vimos, você estava voltando das férias. – Foi um momento estranho. Foi a primeira vez que se reencontraram. Estavam em um aeroporto, ele viajava com a família e ela o tratou com respostas curtas. Nicholas não entendia a razão. Sempre quis tanto conversar com ela outra vez.

- Trabalho perto do centro. Passei num concurso.

- Parabéns! Sei o quanto queria isso.

- É, né?

- O que foi, Ravenna?

- É que lá é só o meu trabalho. Não gosto do que faço. 

- Como assim? – ele lembra que a aconselhou seguir outra carreira no passado.  Deduz que talvez ela tenha cedido à pressão da família.

- Tem gente que pensa muito nisso. Ocupa boa parte do dia trabalhando. Acho errado. 
Ele estranhou aquela frase. Acorda cedo, gosta do que faz, pratica esportes, estuda arte. Seus dias não dão conta do tamanho dos seus sonhos. Continua a conversa:
- E com o que você gosta de passar o tempo?

- Ah! Quando não estou estudando, estou dormindo. 

- Estudando para qual concurso?

- Quero trabalhar na Receita Federal. Mudar de cidade. Sair daqui. Mas às vezes, acho que meu destino é ficar. Tanto que estudo e não alcanço os meus objetivos.

Nicholas controlou o impulso de dizer: “seu destino é ficar aqui comigo. Vai ficar tudo bem!”. 

- Às vezes, me convidam para sair e penso, é melhor ficar em casa dormindo. – ela continua.

- Bem... Depois de jantar, daqui vai para onde?

- Vou visitar minha cachorra?

- Lola?

Ela se engasga um pouco:

- Você se lembra dela?

- Claro! Eu que te dei.

- Foi mesmo – esconde o rosto com as mãos.

- Está tudo bem. Hoje ela mora onde?

- Na casa da mãe do meu ex-namorado. Está velhinha. Nosso acordo é que devo visitá-la e assumir as despesas.

- Essa guarda compartilhada gera algumas recaídas?

- Não. Claro que não! – tenta disfarçar um sorriso, mas ela sabe que aquela franqueza faz parte de Nicholas.

- Tem certeza? Há um jeito de saber: ele vai ganhar presente no natal?

- Claro que não!

- Então acredito em você. Agora fico curioso por que acabaram.

- Sabe, nosso relacionamento foi acoisa mais intensa que vivi.

Ele sente o próprio sangue ferver.  Controla a respiração. “Quanta ousadia em me dizer isso! Como queria ver esta coragem quando éramos nós dois contra o mundo”. Decide prender-se aos fatos. Ele sabe se comportar em uma negociação agressiva. 

- Só que ele nunca tinha tempo para mim. Sempre ele tinha outras coisas para fazer. Me deixou esperando várias vezes. Cansei de ser a segunda opção. Chegou ao ponto que coloquei um limite: se eu não podia ser prioridade, era melhor acabar. 

Nicholas percebe que deixou um legado:ela sabia o que era ser valorizada. Ele pergunta: - E hoje, como estão?

- Mesmo namorando outra pessoa, ele diz que está trabalhando em nosso futuro. 

- Ele gosta de você.

- Perdeu as oportunidades que eu dei. Agora ficou difícil, né?

Ele pensa se também não perdeu as oportunidades dadas. Avalia os erros que cometeu. Que cometeram. Quando terminaram, ele lembra que ela queria continuar e ele não. Ela sofreu bastante. Talvez por isso ela não o deixe se aproximar.

- Sabe o que penso? Você tem que dizer o que quer em seus relacionamentos. Como já namoramos, sei o que digo. Às vezes, só percebemos que ferimos seus sentimentos quando já é tarde. Talvez você possa se comunicar melhor.

Ela fica em silêncio.Mexe no colar com a ponta dos dedos e comenta:

- Sério que pensa isso?

- Verdade! Tem uma coisa que faz tempo que quero te dizer. – Com todo equilíbrio possível, permite que saia precisamente apenas estas palavras, enquanto olha diretamente para ela: - Sinto falta da época que a gente conversava.

- Você se sente assim porque antes de namorarmos, éramos amigos. 

Nicholas lembra que possuem uma historia cheia de verdades, sonhos e promessas quebradas. Mas ninguém conta. Ela deveria saber tudo sobre ele, mas não sabia nada.
Ele pergunta mais sobre o trabalho dela e para quais lugares ela vai. Ela conta. A garçonete recolhe os pratos. Ele compreende que Ravenna deseja uma vida comum. Uma rotina. 

- Você quer mais alguma coisa? 

- Não, obrigada! - Ela ajeita o cabelo por trás da orelha. Olha para ele de baixo para cima. Um código tácito que ele reconhece, é quase um convite. É Natal. O primeiro beijo deles foi roubado em uma data como esta, logo após um gesto como este.

Naquele átimo, Nicholas reflete sobre como idealizou sua musa a inspirá-lo a dar o melhor de si, mas ela quer ser imperfeita e envelhecer como todo mundo. Ele aprendeu a respeitar as próprias cicatrizes. Nestes quinzes anos, Ravenna não estava lá para ajudá-lo a se levantar ou para comemorar. Sabia que qualquer avanço, seria uma afronta à pessoa que havia se tornado. Ele pergunta: 

- Quer me dizer algo?

- Não – Ela fica surpresa com a hesitação.

- Então vamos – ele se levanta e a acompanha até o carro.

Despedem-se deixando ao acaso um próximo encontro. Trocam contatos e ela vai embora. Nicholas respira mais leve e contempla aquele momento. Agradece pelo que passou. 

Assim que liga seu telefone,ele toca. Pensa que deve ser o Eduardo. Está enganado.É Ariadne, sua esposa.Limpa a garganta, organiza os pensamentos e atende:

- Oi, amor! Pousaram? Chegou bem na casa da sua mãe? E as crianças?


Transformação

Victor Araújo



Quando certa manhã Vitinho acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado em uma bela borboleta azul. Seu dorso prolongado pelas asas repousava sobre o sexo de sua namorada, feito um adorno. Era como se do púbis brotasse o inseto, que insistia em se deixar ficar sobre o tufo de pelos, e com espasmos curtos, quase imperceptíveis, hesitava em mover-se. Hesitava entre o voo e o sexo.

A namorada olhava o bicho encantada com o azul daquelas pétalas laterais que conferiam ao inseto uma aparência de sonho. Não se movia, por sua vez, temendo que o encanto se quebrasse, embora a vergonha de se ver exposta a impelisse ao contrário. Foi vencida pelo encantamento. O ser etéreo começou a balouçar sobre ela, um halo de fumo se espalhava pelo quarto, tudo envolto em névoa. Não se divisava mais o que era ente e o que era sexo. Pelos e pétalas eriçadas.

 Os dois se abraçavam num abraço tal, que quase decolavam pelo exíguo espaço da cama. Lá fora se ouviam barulho de gente. Mas isso não os intimidou. Agora a libélula a forçava a levantar as nádegas, evitando seu pretenso voo, num jogo que só as fêmeas são capazes.

Então, algo disparou dentro dele. Agia como tal, como sexo oposto:- “- mas, pensando bem-, melhor não se importar”. Não ligou, agora era uma borboleta. Uma assexuada.“Sou uma lepidóptera”-, pensou. “Tenho asas escamosas”.E começou a espalhar o pó, que cobria suas asas, sobre lábios da, agora, imensa vulva. A namorada movia-se em movimentos espasmódicos, num crescendo, como a coda de um granfinale. Num misto de prazer e violência, um desejo de fazer o bicho gozar até morrer.


Então ela passou a mexer devagarinho, movendo as ancas de um lado para o outro, abrindo e fechando as pernas, num amplexo que alargava a flor da grande vulva. Tiritando, descontrolada, febril. Enquanto o dorso do animal deslizava lentamente para dentro. Quando, zás,num trançar de coxas, ela o empurrou todo para si, que escapoliu para o fundo, e com o suor escorrendo lhe pela face,-  apertou as pernas no clímax e até mata-lo.

O aniversário

Deizimar Mendonça Oliveira


__ Meu amor, parabéns! Que você cresça lindo e cada vez mais ajuizado!
__ Obrigado, tia!
__ Vamos, abra! Gostou?
__ Aham!
__ Quer que eu te mostre como funciona?
__ Eu sei como funciona, tia, obrigado! – Ainda sorrindo, correu até a janela, olhando para baixo e repetindo o gesto a cada volta que dava na pequena sala do apartamento.
__ Sente-se aqui comigo. Conte-me como vão as coisas.
__ Bem.
__ E na escola?
__ Tudo bem.
__ Aceita um refrigerante? – intervém a mãe, sorriso largo no rosto.
__ Será que cheguei cedo? – perguntou à mãe, franzindo a testa.
__ É claro que não, os outros é que estão atrasados, você chegou até meio tarde. Olha aí, a campainha está tocando.
__ Tio! – gritou o menino, abraçando suas pernas e enroscando-se com ele.
__ Que bolo lindo! – ensaiou dizer a tia, com um sorriso pálido. – Que alegria ver o seu tio, não é? Vocês se veem sempre? – perguntou, agora virando-se para o menino, enquanto via o homem se afastar rumo a cozinha, aos risos com a mulher – o que foi? Eu disse algo errado? Por que está chorando, meu menino?
__ Eu não estou chorando!
__ Vamos, venha, sente-se aqui com a tia. O que foi, meu amor, pode confiar em mim.
__ Ele disse a verdade – e choramingando – ele disse que ninguém viria!
__ O quê? Do que está falando, meu amor?
__ O Leandro, ele disse que falaria para os meus amigos não virem.
__ Mas quem é Leandro, por que ele faria isso?
__ Ele disse que sou esquisito, que tenho cara de cegonha e que avisaria os meninos para não falarem mais comigo.
__ Mas isso é um absurdo! Sua mãe sabe disso?
__ Ela não pode saber – disse com uma voz quase inaudível – ela ficaria muito triste. Por favor – suplicou, juntando as mãozinhas – prometeu que não contaria para ela.  Mamãe! - gritou o menino, enxugando os olhos com os dedos miúdos – Você tem certeza de que convidou todo mundo?
__ O que, meu filho? – disse a mãe, irrompendo na sala, já com os olhos marejados – Você me jurou que faria isso, sabe que a mamãe é ocupada! Eu... Eu deveria ter faltado ao trabalho...
__ Ah, mãezinha, foi até melhor, assim podemos comer o bolo só nós.
__ Não seja mal-educado, João Victor! Compartilhar é que faz a gente feliz!
__ Desculpe, mamãe.