Abrir e fechar os olhos

Para meu pai

Marcelo Spalding

Insistem para que eu abra os olhos. Pegam na minha mão, acariciam meu rosto, tentam uma graça, um incentivo. Esperam, rezam, se revezam. Sai o Otávio, que fala baixo e suspira alto, sai de cabeça baixa, sem cumprimentar a irmã, entra a pequena, de sorrisos medidos, gestos ensaiados, olhar atento. Tem sido assim nos últimos quarenta e três dias, vivemos a mesma vida em mundos paralelos, eu preso à cama e eles acorrentados a mim.

Não sei precisar de onde veio o golpe, se do revólver de um vagabundo, da fúria de um vizinho, da violência de um motorista ou do capricho de um deus. Não sei compreender os motivos, as culpas, os remorsos, tampouco as ausências e os desejos que ficaram pra trás. Não sei aplacar a ânsia das pernas, acalmar a urgência dos pulmões, amenizar a dor da pele, iludir os sentidos. Mas enquanto permanecer nesse mundo poderei ver e ouvir os seres deste e do outro mundo, estar aqui e em todos os lugares, nesse e em todos os tempos.

A pequena traz uma cartolina enrolada, com alguma dificuldade vai revelando o papel e nele há fotografias, muitas, tantas quanto possível para uma vida pacata. Ela pede licença para colar o presente na parede, quer que seja minha primeira visão no dia em que eu abrir os olhos. Com cuidado prende as pontas, ajeita os recortes, observa o resultado. No fundo não acredita que eu esteja ouvindo, mas fala alto, fala para si, não sabe ainda que eu não apenas vejo cada imagem como também me transporto para o dia em que foi tirada, visito cada casa, abraço cada amigo. Reparo, depois de uma reveladora e cansativa volta no tempo, que em algumas sorrio, em muitas não, em algumas estou sentado, em outra de pé, em algumas estou sem camisa, em outros de terno e gravata, em algumas olho para a câmera, em outras para um ponto qualquer, mas em nenhuma, absolutamente em nenhuma delas estou sozinho, como em nenhum momento dessa viagem me senti sozinho, nem no dia da morte da filha bebê nem no dia da certeza que ela não voltaria aos meus braços nem na derradeira manhã do golpe. Nunca.

A cartolina fica na parede. Com o passar dos dias me acostumo com a presença dos pequenos e aprecio a persistência da pequena, que depois das fotos trouxe um radinho, um bibelô da casa, meu travesseiro. E cada vez que exibia o presente, insistia para que eu abrisse os olhos, uma insistência classificada por médicos e enfermeiros como comovedora, ingênua e triste. Mas ela se aproximava, beijava meu rosto como nunca dantes, baixava a cabeça para rezar e dizia: eu espero, pai, eu espero o tempo que tu precisar.

Para ela foram meses, para mim apenas um instante, pois o tempo não é igual em todos os mundos. Um dia ela chegou sem esconder uma alegria transcendente, alegria maior que os primeiros traços de preocupação já cravados na face, maior que o permitido pelo fio desesperado de esperança no meu retorno, e me pediu para abrir os olhos e ver o milagre da vida. Pegou na minha mão e a pousou com cuidado no seu ventre, com a mão já posta falou que o bebê teria o meu nome e não em memória, mas como homenagem a alguém que escolheria viver, e nesse dia, nesse dia lembrei do meu primeiro bebê, do anjo que partira cedo, e finalmente cedi ao desejo de todos.

Devo ter aberto um olho só e com grande dificuldade, pois demorei para ter uma visão clara do rosto delicado da pequena, do rosto de traços tão semelhantes ao da minha juventude, e quando consegui ela chorava sem soluçar, as lágrimas escorrendo e caindo na minha mão morta sobre o ventre vivo. Abri um olho, depois outro, ou parte dele, abri-os e meu olhar não deve ter transmitido dor, nem medo, nem revolta, nem tristeza. Em pouco tempo todos meus filhos estavam ali e a pequena segurava a cartolina que me trouxera de volta para o mundo dela. Um por um se aproximaram e beijaram minha face, como nunca antes.

Não voltei a fechar os olhos, observava tudo com a intensidade de quem já conhecera outro mundo. E não voltaria a fechar os olhos jamais não fosse a pergunta muito grave da pequena: a gente te quer por perto seja como for, pai, mas precisamos saber se tu também quer. Tu quer, pai? Responde pra nós, dá um sinal. Tu quer ficar com a gente? Eu jamais voltaria a fechar os olhos, mas precisei fechá-los e abri-los com calma para que entendessem meu sim. Sim.

Daquele dia em diante, abrir e fechar os olhos deixou de ser um gesto involuntário, singelo, automático. Foi com um abrir e fechar de olhos que concordei com o nome do bebê, com um abrir e fechar de olhos que agradeci à pequena, com um  abrir e fechar de olhos que aprovei a cartolina com fotos e, mais tarde, com um abrir e fechar de olhos que escolhi cama, quarto, médicos. Foi com um abrir e fechar de olhos que escolhi viver.


*Conto premiado no concurso Prosa na Estrada, do IEL - Instituto Estadual do Livro do RS

Sobre listas e sapos*


A vida é sempre real, mesmo que dela duvidem os próprios fatos. 

 Ana Luiza Tonietto Lovato 


 Acontece que Laura era destas solteiras por convicção. Não lhe servia nada menos do que queria, exatamente como queria, e por isto portava uma lista com pré-requisitos. Condições a serem cumpridas pelos pretensos namorados, para que o primeiro encontro pudesse avançar para o segundo, para o terceiro e assim por diante.

Havia os que a julgavam prepotente. Laura não se importava. Era, sim, segura, pragmática e devota da busca da perfeição. Simplesmente estava sendo fiel ao seu estilo, a si mesma. E este era mais um requisito que o candidato deveria preencher: não se importar com aquela seleção. Que, no caso, Laura achava natural.

Podem imaginar, então, que ela se tornou uma solteira também pelas contingências. Muitos preencheram várias das pré-condições, mas precisaria juntá-los todos para que a lista se completasse. E não, Laura não estava disposta à poligamia.

Suas amigas não cansavam de tentar demovê-la desta estratégia que só faria mais improvável o aparecimento do príncipe. E por isto, justamente por isto, é que mais ainda Laura se apegava às suas exigências. Ser confundida com uma que aguarda o príncipe? Ela, Laura, tida como alguém que pudesse ter tais feéricas esperanças?

E a vida seguia seu curso sem que Laura confessasse qualquer descontentamento. Mantinha-se convicta, mesmo contra todas as previsões. Nada a demoveria da certeza absoluta a respeito de suas seletivas atitudes. Até que um dia, vejam bem, Laura caminhava pela Rua da Praia, passando em frente a uma confeitaria a menos de duas quadras da Av. Riachuelo. Rua improvável da sua rotina, onde estava apenas para uma jornada incomum de trabalho. Zanzava por ali conduzida pela despreocupação de quem está aproveitando o intervalo do almoço para esticar as pernas, já que a chuva havia dado uma trégua.

Foi quando avistou o sapo. Vinha da direção oposta e a contemplou frente a frente. A distância entre eles composta por apenas alguns metros. Laura, tomada de susto, em um ímpeto atravessou a rua, seguida pelos esbugalhados olhos do anuro. Na outra calçada, procurou no Google, com a rapidez que as circunstâncias permitiam, todas as informações que poderia obter a respeito deste anfíbio. De onde estava, escutava com nitidez assustadora os sons que ele emitia, sendo desnecessário olhar para saber que ele continuava ali.

“Ciclo vital dividido em aquático e terrestre, desaparecendo a dependência da água na fase adulta. Apesar de possuir pulmões, a maior parte da respiração feita por trocas gasosas, através da pele.” Certo, isto explicava o sapo em plena rua, talvez em busca da umidade ainda retida da chuva, que há pouco havia cessado.

Provavelmente oriundo das margens do Rio Guaíba, talvez tenha chegado até o centro da cidade cumprindo uma rota migratória, em busca de algum plausível local para a reprodução. Mas o Rio Guaíba não estava assim tão próximo assim... não para um sapo... e ali, lugar plausível, em plena agitação do centro?

O fato é que lá estava ele, do outro lado da rua. O dorso coberto por uma pele mesclada de verde e marrom, verrugosa. A parte inferior do corpo quadrado exibindo uma tez mais lisa e clara.

Vejam, tudo isto cabia nas considerações científicas que Laura recolheu da Wikipédia. Apenas um detalhe se fazia díspare. O sapo, este que acabo de descrever, em vez de estar rente ao chão sobre os membros posteriores dobrados e fisiologicamente qualificados para a locomoção aos saltos, se encontrava sabem como? Caminhando! Sim, caminhando. Nas duas patas traseiras, os membros desflexionados. Os superiores, mais curtos, estendidos ao longo do abdômen, fazendo as vezes de braços.

Podem imaginar agora o tamanho do susto que fez Laura trocar de calçada? E mais, o quanto ninguém, nunca, acreditou que isto tenha acontecido? Um sapo caminhando, em franco desafio à própria natureza?!?!

É, não houve quem afiançasse este acontecimento e por isto Laura cansou de tentar tornar crível sua aventura em frente à confeitaria da Rua da Praia. Desistiu de falar ou comentar o assunto, dada a reação irônica de todos, até mesmo das amigas que acreditavam em príncipes aflorados de sapos, após um encantado beijo.

O único resquício desta história foi o fato de Laura ter sido vista várias vezes caminhando por aquela rua do Centro Histórico, sempre nos dias chuvosos.

E sobre a aliança que apareceu no anular da mão esquerda, nem mesmo os íntimos tinham qualquer conhecimento de como foi parar ali. Só o que diziam é que quando ela era inquirida a respeito da tal lista de pré-requisitos, respondia com uma amnésica expressão:

- Lista? Que lista?

 *Conto premiado no concurso Prosa na Estrada, do IEL - Instituto Estadual do Livro do RS em parceria com a AGES

Problemas Dermatoamorosos


Jonattan Castelli

Pela primeira vez na história a previsão do tempo tinha acertado: aquela noite era possivelmente a mais fria que Porto Alegre já tinha enfrentando. Temperatura negativa. De congelar até os ossos. Em razão disso, Julio e Cintia decidiram ficar em casa, tentando se aquecerem debaixo das cobertas, acompanhados de uma garrafa térmica cheia de quentão.
- Julio, Julio, vem cá, chega mais perto que eu quero ver uma coisa!
- O quê?
- Vem cá. Fica de costas. – Ela colocou a mão nas costas de Julio e ele se afastou, tremendo.
- Ai, não me toca, mãos de gelo.
- Ah, minhas mãos nem estão frias nada.
- Estão sim. E afinal, o que tu quer tocando nas minhas costas. Imagino que fazer uma massagem é que não é?
- Claro que não. É que tem uma espinha nela.
- Uma espinha? Tá. E daí?
- E daí que eu quero espremer.
- Bem capaz que tu vai fazer isso! Mas nunca. Tá louca?
- Por que não?
- Primeiro que é nojento. E depois, e mais importante, dói pra burro. Então vai esquecendo, mocinha.
- Mas eu quero. E vai ser rapidinho, eu juro. Não vai doer nada.
- Ah não, nem vem com esse papo. Não vai doer em ti, mas em mim vai. Aliás, que mania você tem de querer espremer minhas espinhas. Deixe-as em paz.
- Tu falou que espremer espinha era nojento, mas nojento mesmo é deixar aí, crescendo.
- A espinha é minha e faço com ela o que eu quiser. Além disso, eu vou passar uma pomada.
- Como você é chato. Não deixa eu fazer nada!
- Olha, se “nada” é me machucar e deixar um buraco na minha pele, bem, está certa. E chega pra lá. – Julio se deita na cama e se tapa com a coberta. Cintia fica de cara fechada, sem dizer uma palavra. Quando Julio pega um livro de contos do velho Ernest para ler, Cintia dá um daqueles suspiros de desagrado que as mulheres sabem fazer muito bem, quando são contrariadas.
– Que foi?
- Nada.
- Que foi?
- Nada.
- Nada, não. Algo está acontecendo. O que você tem?
- Não é nada não. Não te preocupa. Esquece.
- Oras, nem vem com essa Cintia. Eu sei bem que quando tu diz para eu não me preocupar é para eu ficar alerta e extremamente preocupado. O que foi que eu fiz agora?
- Tu não fez nada. É que....
- Logo vi que tinha algo.
- Ultimamente você não me acompanha pra nada. Além disso, me ignora e não deixa eu fazer nada.
- Isso tudo é por causa da espinha?
- Claro que não.
- Pois eu não acredito em ti. Quando foi que eu te ignorei ou não te acompanhei, eu estou sempre do teu lado.
- É, pode ser. Mas estar do meu lado não significa me acompanhar. Eu sei que às vezes tu estás comigo, mas fica pensando em outra coisa.
- Ah, agora eu tenho que estar contigo fisíca e mentalmente. Não posso pensar em nada que não seja você. Desculpe-me, então. Agora só vou pensar em você.
- Por favor, Julio, não seja irônico.
- Eu não estou sendo irônico.
- É claro que está! E além disso, você se interessa por outras mulheres.
- O quê?! Isso é uma mentira deslavada! Eu nunca te traí!
- Eu não disse que você me traiu. Só disse que você se interessa por outras mulheres. Você olha e deseja outras mulheres, que eu sei. E ainda por cima faz isso na minha frente.
- Mentira! Quando eu fiz isso?
- Ora, semana passada mesmo. Na festa da empresa. Eu te vi secando a Ritinha!
- Eu? Ritinha? Que Ritinha? Você está louca!
- Louca? Não. Eu sei o que eu vi. Você estava de olho na Ritinha e não se faça de desentendido.
- MAS EU NEM SEI QUEM É ESSA RITINHA!
- A RITINHA! A garota de vestido vermelho. Com as pernas de fora.
- Ah, sim! Ela!
- Tu é um tarado mesmo! E cara de pau.
- Agora eu não posso olhar para ninguém?
- Não na minha frente. E ainda mais de um jeito tão descarado.
- Nem vem, Cintia. Vai dizer que tu nunca fez isso.
- Eu nunca.
- Nunca?
- Nunquinha.
- Tá bom. Vou fingir que acredito.
- E tem mais, eu sei que tu beijou aquela moça lá no clube.
- Eu não beijei. Ela estava se afogando e eu a salvei e fiz respiração boca a boca.
- Sei, bem, meu herói! E a Raquel?
- Que Raquel?
- QUE RAQUEL? TUA EX.
- Ah, ela. Que é que tem?
- Eu sei que ela te adicionou no Facebook.
- Tá, e daí?
- E daí que tu aceitou.
- E o que é que tem?
- O que é que tem é que ela é tua ex!
- Não vejo nenhum problema nisso. Somos civilizados. Só conversamos.
- Eu não acredito que tu esteja dizendo um disparate desses! Quando eu disse que tinha visto o Armando tu quase me matou!
- Eu?
- Surtou, bem ali, no meio da sala. Agora tu vai me dizer que ser amiguinho da ex no facebook é normal? E mais: tu curtiu uma foto dela! Na praia! De biquíni! – Julio engole seco – E então, não vai dizer nada?
- Eu...
- Você?
- Eu....
- Fala, homem. – Julio suspira.
- Tudo bem, você ganhou. Pode espremer a minha espinha.
J.R.C.

"A" Festa


Stefanny Campagnaro

A Chopada da Faculdade de Medicina de Vitória é considerada “a festa” para os universitários. Com cem reais você adquire um convite para curtir o evento em um local paradisíaco, com comida e bebida liberadas, ao som das melhores bandas do momento. É claro que eu não ficaria de fora dessa, mesmo com meus pais buzinando no meu ouvido.

Segundo Dona Luzia e Seu Carlos, aquilo não era o local adequado para uma garota como eu. Paciência! Esse ano eu tenho motivos de sobra para marcar presença: eu era uma das alunas do primeiro período da Faculdade e tinha a obrigação de vender, no mínimo, vinte convites. (Um deles, óbvio, era o meu!) E a turma que realizasse essa empreitada com sucesso receberia a quantia integral das vendas depositada na conta corrente criada para custear as despesas do baile de formatura.

Victoria era a Presidenta da Comissão de Formatura da nossa sala. E posso dizer que ela é a pessoa mais competitiva e esforçada que conheço. Para incentivar nossos colegas, ela propôs que a pessoa que vendesse o maior número de convites teria direito a um jantar no restaurante de sua irmã, o Artemísia. Poderia parecer besteira, se este não fosse o lugar mais badalado de Vitória, em que era necessária reserva com antecedência mínima de dois meses.

O vencedor foi Danilo. Muitos ficaram chateados, achando que havia sido marmelada, já que ele era um grande amigo de Victoria. Mas os números não mentem, assim como a quantidade de conhecidos e o poder de persuasão desse adorável garoto.

Victoria e Danilo são meus amigos desde que cursamos o ensino médio do Colégio São Francisco. E não seria natural se não fôssemos aprovados na mesma faculdade e estudássemos na mesma classe, pois fazíamos absolutamente tudo juntos, apesar de sermos pessoas muito diferentes.

Danilo fazia o tipo moderninho e conhecedor de todas as tendências de moda, beleza e baladas. Era figurinha carimbada nos melhores eventos e seu rosto estava sempre estampado em fotos das colunas sociais. Victoria por sua vez fazia a linha geração saúde. Detestava dormir tarde, bebidas alcoólicas e doces em excesso, a não ser que fosse uma ocasião especial. Eu tinha um pouquinho dos dois. Creio que seja esta a razão de nossa amizade ter durado tantos anos.

Meus pais não eram as pessoas mais flexíveis do mundo. Penso que é pelo fato de minha irmã mais velha, Samantha, não gostar de se divertir e curtir a vida. Não tenho inveja da minha irmã. Acho que tenho um pouco de pena, pois eles colocam todas as suas expectativas sobre ela. Nada a reclamar da Sam. Sempre foi um doce de pessoa, toda certinha e exemplar: melhor aluna da escola, fundadora de clube de livro, oradora da turma do ensino médio, primeiro lugar geral do vestufes. Resumindo, a filha perfeita e preferida (sim, isso existe!).

Diferente de mim, Samantha nunca foi muito enturmada. Andava com uma amiga feinha e sombria chamada Jaqueline, ficando sempre isoladas em um canto do pátio da escola. Penso que foi por insistência dessa garota que Samantha resolveu ir para a festa. E isso deixou meus pais bem aliviados, já que iríamos juntas e imaginavam que ela ficaria de olho em mim.

- Samantha, você é a ajuizada da casa. Não deixe a Sabrina fazer besteiras.

- Porra, mãe. Sou universitária agora. Larga do meu pé.

- Não fale assim com sua mãe, sua insolente.

- Parem de brigar, por favor. Eu já falei que cuido dela.

- Eu não preciso de babá, cacete!

- Olha essa boca!

É duro ser a rebelde sem causa do lar. Ah... Sem causa uma vírgula. Eu detesto todo esse controle exagerado, essa fixação com os meus amigos, e toda essa repressão sem sentido. Nunca fiz merda nenhuma na vida. Bebo pouco, não uso drogas, sempre fiz sexo com camisinha e não falo com estranhos. Por que diabos não é possível confiar em mim? Só porque sou popular?

Esperei ansiosamente pela Chopada. E para mim, pelo menos, foi incrível. Dancei, me diverti com meus amigos como se não houvesse amanhã e ainda encontrei alguém que posso chamar de meu príncipe encantado. Marcos também cursava o quinto período de medicina na FMV, irmão de um amigo colorido do Danilo. Já nos conhecíamos, mas nunca tivemos a oportunidade de conversar.

Marcos era sensacionalmente lindo. E para completar, tinha aquela voz sedutora que deixava todos os pelos do meu corpo arrepiados e fazia meu coração disparar com o simples toque dos seus lábios nos meus. Ele realmente me deixava nas nuvens. E era a primeira vez que eu me sentia assim.

Quando cheguei em casa, já deviam ser umas sete horas da manhã. Estranhei de imediato a ausência de movimentação. Aquilo era realmente esquisito, já que meus pais são pessoas que acordam muito cedo, mesmo nos fins de semana. Fui até o quarto deles e abri bem devagar a porta. Vazio. Caminhei até o quarto de Samantha. Ninguém. Coloquei o aparelho de celular para recarregar a bateria e logo que foi ligado, começou a disparar com os avisos de chegada de mensagens de voz.

“Sabrina, cadê você? Estou atrás de você faz um tempão. Passando mal... Me leva para casa.”

“Achei a Jaqueline. Não se preocupe. Vou ficar bem.”

“Amiga, onde você se enfiou? Sua safada. Não acredito que você vazou e largou a gente aqui! Diz pra mim que você não vai dar de primeira pro Marcos! Bem... até eu que nunca faço isso daria! Hahaha! Tem camisinha na sua bolsa, né? Me liga amanhã. Quero saber todos os detalhes! Beijos.”

“Sabrina sua louca! Cadê você? Vi sua irmã passando praticamente carregada por um cara muito estranho. Tá tudo bem? Devo ficar preocupado? Puta que pariu! Sua irmã parece drogada. Atende essa merda desse telefone”.

“Sabrina, minha filha. Onde você está? Estamos desesperados atrás de você... Recebi uma ligação do Hospital Santa Eugênia. Sua irmã foi levada às pressas para lá. Por favor. Venha para cá com urgência”.

Puta que pariu. O que a Samantha aprontou?

Entrei no meu carro e parti em direção ao hospital. Eu só me dei conta de que deveria ter colocado uma roupa mais decente e jogado uma água no rosto quando um dos meus professores da faculdade me abordou na porta do hospital, brincando comigo, dizendo que a farra devia ter sido muito boa.

Liguei para meu pai, que estava com uma voz chorosa, e consegui a localização deles. Apartamento 603.

Meu coração estava a mil. Tudo o que eu queria era ver minha irmã e ter certeza de que ela estava bem.

Quando eu a encontrei na festa, ela parecia ótima. Era a primeira vez que eu a via mais solta, divertida e relaxada. Ficamos um bom tempo juntas. Era nítido que ela havia tomado uma tacinha ou outra de espumante, mas não estava bêbada a ponto de ser internada por coma alcoólico.

Ao entrar no quarto me deparei com uma cena que me deixou realmente estatelada. Nem consegui ouvi as vozes dos meus pais. Apenas me sentei ao seu lado da cama e acariciei seus cabelos loiros emaranhados.

Seu corpo estava praticamente inerte e ligado a uma série de aparelhos. Abracei meus pais e disse que tudo ficaria bem. Olhei na prancheta o nome da médica que estava de plantão e fui atrás dela para saber o que havia acontecido. Aquilo não parecia nem de longe um simples “coma alcoólico”.

Doutora Iracema não me era estranha. Creio que lecionava na FMV. Logo que a abordei, ela me olhou dos pés a cabeça com uma sobrancelha levantada e respondi sua pergunta mental.

- Sim. A festa foi ótima. Mas estou aqui por causa da minha irmã, Samantha Costa.

- Ah... Você é a Sabrina. Sua mãe chegou a perguntar aos policiais se eles tinham notícias suas.

- Policiais? Do que a Senhora está falando?

- Pelo visto não te informaram. Sua irmã quase teve uma overdose. Se não tivessem corrido com ela para
cá, provavelmente estaria morta agora. Encontramos em seu sangue compostos da cocaína.

Precisei me apoiar na parede mais próxima de mim para digerir a informação. Cocaína. Overdose. Nada daquilo fazia sentido. Não combinava com a minha irmã, impossível. Retornei para o leito e abracei com força meus pais e deixei as lágrimas jorrarem do meu rosto. Permanecemos o dia inteiro em silêncio. Não havia nada que pudesse ser dito que bloqueasse a dor.

Samantha acordou dois dias depois. Estava bem assustada e perguntou várias vezes o que havia acontecido para ter sido levada para o hospital. Não se lembrava de absolutamente nada. Durante os dias em que ficou internada, eu e meus pais estivemos completamente alheios a tudo o que ocorria a nossa volta. Eles trabalhavam o dia inteiro. E para não deixá-los cansados e ainda mais estressados, preferi fazer companhia para minha irmã.

Apesar de nossa diferença de idade ser de apenas dois anos, eu e Samantha nunca fomos muito ligadas.

Acho que no fundo eu sentia ciúmes por ela ser a queridinha da família. Mas durante os cinco dias em que estávamos no hospital, desenvolvemos essa ligação de irmãs-amigas que eu tanto almejava.

Em razão do tempo livre que tínhamos sozinhas, conversávamos bastante. E acabamos trocando algumas confissões. Contei para ela sobre o Marcos e como eu fui parar na casa dele durante a festa, e ela me falou que estava ficando com um garoto do curso de Odontologia da Universidade Federal, que ela havia conhecido na biblioteca. E confessou que foi ele quem deu a ela a droga que a levou a ser internada às pressas no hospital.

- Ele me disse que seria divertido... Que eu ficaria relaxada e excitada.

- Excitada? Você transou com ele no dia da festa?

- Não lembro direito. Vem um flash ou outro na cabeça, mas nada muito claro.

- Você é louca, Sam! Nunca imaginei que você faria algo assim. Isso é o que esperam de mim, não de você.

Quando Samantha voltou para casa, restabeleci minha rotina habitual. E logo que pisei na faculdade, reparei que algumas pessoas me olhavam de modo diferente. Algumas com pena, outras com maldade. Me perguntei se eu havia feito alguma merda na festa. Eu tinha certeza que não, até porque fui embora com Marcos umas três da manhã.

Victoria e Danilo estavam sentados no pátio. Perguntei se eu havia feito algo errado na festa e se eles sabiam o que estava acontecendo. Danilo coçou a cabeça, Victoria desviou o olhar encarando o chão.

- Por favor... Conta você Dan Não consigo.

- Falem logo. O que houve?!

- Tem um vídeo erótico da Samantha na internet.

- Hã?

- Calma amiga. Não chora.

Danilo sempre nos mostrava os vídeos eróticos que recebia de jovens e adolescentes que se permitiam ser filmadas. Engraçado é que eu sempre critiquei essas meninas. Achava ridículo elas se prestarem a esse papel. E sempre que isso ocorre, o desenrolar da história é o mesmo... O vídeo cai na rede e se espalha que nem vírus. Horas depois, todo mundo já o possui. A garota é sempre a mais ofendida, uma vez que não divulgam só o vídeo, como também a página das redes sociais e até mesmo o telefone.

Dias depois, as vítimas estão dando entrevista em jornal e postando nas redes sociais uma mensagem imensa dizendo que não sabiam como aquilo havia acontecido, já que confiavam tanto no namorado/ficante. “Aconteceu porque você foi permissiva demais”, eu recriminava.

E agora isso estava acontecendo dentro da minha família. Minha própria irmã havia sido uma vítima de crimes virtuais. Minha cabeça fervia. Eu precisava ver a Samantha e me assegurar que ela não havia assistido essa porcaria ainda.

Ao chegar em casa, fui direto para o seu quarto. Ela estava deitada na cama encolhida, com o cobertor cobrindo sua cabeça. Bati antes de entrar. Nada de ela se mexer. Perguntei se estava tudo bem. Sem resposta. Em sua mesinha de cabeceira, vi seu tablet com a página do facebook aberta contendo uma série de comentários obscenos e maldosos. Respirei fundo pra conter a raiva.

Puxei delicadamente a colcha para que eu pudesse dizer que ela não precisava se esconder, que eu estava ali para o que ela precisasse, e que juntas superaríamos esse problema. Mas acabei me deparando com seu corpo todo ensanguentado e dois cortes profundos no antebraço direito. Ao seu lado, uma caixa de analgésicos e uma faca de cerâmica.

Caí sentada no chão, sem reação e com olhar fixo em seu rosto. Era visível a agonia e a dor.  Depois de um minuto, me recompus e me forcei a pensar de modo racional. Tomei seu pulso esquerdo para ver se estava morta. Batimentos extremamente fracos. Liguei para uma ambulância e pedi máxima urgência.

A espera pelo socorro pareceu uma eternidade. Busquei no banheiro um pacote de gaze para estancar o sangue que ainda irrompia. Como a hemorragia não cessava, tentei estagná-la com uma compressão indireta, apertando a artéria braquial, que fica próxima da axila. Apesar dos meus esforços, foi tudo em vão.

Quando perdi sua pulsação, me segurei ao máximo para não entrar em pânico. Pus a mão em seu peito e senti seu coração vibrar com muita força. Percebi também que sua respiração estava excessivamente acelerada. Sintomas da exsanguinação. Ela precisava urgentemente de uma transfusão sanguínea. Eu estava de mãos atadas. Só me restava aguardar o socorro.

Sentei no chão ao lado de sua cama, segurei sua mão sã e deixei cair as lágrimas reprimidas. Aproveitei aquele pequeno momento para dizer o quanto a amava e a admirava, e como eu sentiria falta do seu sorriso compreensivo e do seu carinho fraternal.

Os paramédicos finalmente chegaram e apenas constataram o inevitável.

No vazio de seu quarto, ficou a saudade e a sede de justiça.