O cego e o povo

Gabriel M. de Moura

O povo atravessa o semáforo. O cego, não. Ele aguarda alguns segundos a mais, pois sabe que há motoristas que costumam furar o sinal vermelho. Ele tem paciência; o povo, não.

O cego anda cauteloso, com sua vareta simplória tateando o solo. Devagar, vence o caminho da Rua da Praia até o Mercado Público. Ouve os vendedores ambulantes, os pedintes, os pássaros da Praça da Alfândega, as peças do jogo de damas percorrendo o tabuleiro de pedra. Se não fosse cego, ficaria horas a fio sentado em algum banco apenas a observar o movimento.

Quando ele sente o cheiro de peixe, sabe que a Prefeitura está próxima. O centro de Porto Alegre tem muitos cheiros, e caminhando devagar se consegue distinguir cada um deles. Porém, as pessoas estão sempre muito apressadas, ou então imersas em pensamentos, atordoadas, desatentas à vida que passa. Já ele, afinado com o presente, não perde nem um segundo de existência. Dá importância apenas àquilo que é essencial.

Propagandas. Vitrines. Ofertas. Homens e mulheres perdem segundos preciosos do dia com projetos, sonhos e promessas. Comprar uma geladeira nova, ganhar na loteria, consultar o futuro com a cigana. Será que eles não enxergam que tudo isso não passa de ilusão? Será que é necessário perder tudo de vista para entender a finalidade da vida?

Ser feliz é algo reservado a poucos. Ele, o cego, se considera um cidadão feliz. E, justo quando decide parar sua marcha e anunciar a todos ao redor uma verdade universal por poucos compreendida, uma bicicleta cruza seu caminho. A bengala prende no raio de metal – a roda arremessa a bengala no meio da rua. O cego perde seus olhos, ninguém o acode.

Ele senta no meio-fio. Estica a perna e procura a velha companheira, tateando o asfalto com a sola do sapato, cuidadoso para não ser atingido pelos carros. Ouve um estalo metálico - uma lotação atropela seu já disforme instrumento. Sente medo, depois raiva e por fim revolta. Ninguém olha por onde anda. Ninguém consegue ver o outro. Estão todos muito ocupados pra pensar. Assim, ele senta, encostado na parede de um prédio. Chora, com as mãos no rosto, sozinho na escuridão, e ouve moedas caírem a sua frente.

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