A possuída

Lucilene Garcia

Clarice ainda era bem pequena quando foi escolhida por nossa legião. Logo cedo, ela demonstrava abertura para nossa ação. Era uma menina difícil desde a infância, gostava mais de si mesma do que qualquer outra coisa e tinha uma tendência à perversão. No início, a família imaginava que eram apenas manhas de criança. Não deu muita atenção para o pequeno gato jogado contra a parede, sem dó; para as agulhas espetadas sorrateiramente na poltrona onde a vó adorava sentar-se; para os empurrões que levava a vizinha de mesma idade, quase sempre marcada por galos na cabeça e esfolados pelo corpo. Afinal, Clarice era mesmo endiabrada.

Os pais davam alguns castigos e uns tapinhas de dó, na esperança de corrigir a menina. Mas somos observadores vorazes e sabemos exatamente quando o medonho é alvo fácil para nós, demônios. Aos sete anos, fizemos uma pequena prova do que seria possível para Clarice e ela passou no teste com aproveitamento. Um dia, chegou uma visita inesperada à sua casa. Era uma prima da mãe, com um bebê de uns quatro meses, um menino lindo, pele branquinha como algodão, que chamava a atenção de todos e não menos a de Clarice. – Olha Clarice, que coisa mais fofinha! - insistia sua mãe, estimulando a sua já extrema curiosidade. Após o almoço, todos tomavam um cafezinho animado na cozinha. O bebê dormia tranquilo na cama dos pais da menina, a qual foi verificar pessoalmente a tal fofice do priminho. Ajoelhou-se ao lado da cama e ficou ali, a espreitar aquele bebê admirado indistintamente por todos, dormindo como um anjinho. – Será que ele estaria sonhando? Bebês sonham? Eles têm pesadelos? Alguns minutos depois, ali na confortável reunião familiar, ouviu-se um grito seguido do choro do bebê. Todos acorreram ao quarto, onde a criança soluçava de dor com o pequeno braço vermelho de sangue. Diante de olhos incrédulos e assustados, Clarice levantou-se por trás da cama, dentinhos afiados, boca suja de sangue, confirmando: – Sim, mãe, é bem fofinho mesmo. Indignados, os parentes foram embora com uma recomendação: – É preciso benzer esta menina.

É divertido ver como os seres humanos acreditam na força da arruda, da espada de São Jorge, do alecrim e do alho. Quando escolhemos aquele que será possuído, pouca coisa pode ser feita e tem que ser bem feita. Clarice já estava sob o nosso domínio, pois fazia o mal e gostava de fazê-lo, parecia gerada por tal natureza, embora seja uma insensata forma de descrever um filho de Deus – o Poderoso! Este, porém, nos parece o maior erro da criação – o livre arbítrio. Os seres humanos não sabem escolher. E a menina crescia, era filha única, provocando tristeza e constrangimentos aos pais. Na escola, as maldades da aluna problema já eram do conhecimento de todos, difíceis de explicar. A diretora não queria saber de chamá-la para advertência. Benzia-se só de pensar na última vez que isto aconteceu por causa de um ritual sanguinário que a menina resolveu fazer com os ratos de laboratório do colégio.

E cada vez mais ficava isolada dos outros e mais próxima de nós. Clarice já quase nos enxergava, sentia nosso comando, mas não tinha noção do que seríamos. Era preciso um ritual de assimilação. Quase próximo de completar seus 13 anos, a menina estava em vias do aparecimento da menarca. Em um dia comum, sentiu uma indisposição tomando conta de seu ser que a perturbou completamente; estava agitada, impaciente, não podia olhar para ninguém que sentia náuseas e vontade de vomitar. Em uma ida ao banheiro, deparou-se com aquela mancha de sangue em sua calcinha. Estava atormentada, quando então, pela primeira vez, encontrou meus olhos, que não tinham sensações de conforto e apenas invocavam: – Mutilação! Mutilação!

De volta ao seu quarto, Clarice, desesperada, procurava por um objeto... Estava ali, bem próximo, um pequeno espelho das ainda existentes bonecas. Jogou-o com força na parede e dos cacos foi-se contorcendo de dor, diante de nossa satisfação, marcando cada pedaço da sua pele. Nem gemia, era um ritual de dor e de silêncio. Quando a mãe, depois de estranhar sua ausência, chegou ao quarto, quase desmaiou de terror ao ver a filha ali, largada, ensanguentada, com os olhos fixos nos meus que só ela enxergava. Sob a orientação dos vizinhos, foi levada ao hospital psiquiátrico, onde a doparam e nós a deixamos assim. Aquele lugar por si só já era suficientemente atordoante para perdermos nosso tempo por ali.

Controlada a crise, Clarice voltou para a casa e já sabia que era nossa, não tinha mais retorno. Mas nós não temos tanta vaidade, como imaginam, a ponto de querermos aparecer, como se fosse um festival de teatro. Nossa vítima fica dominada pelo caráter de seu próprio estigma. As poucas vezes que havíamos nos manifestado tinham sido suficientes para isolar aquela criatura que foi crescendo e amadurecendo, ora classificada como louca ora como possessa. Não faltavam orações dos amigos da família e dos parentes, mas de longe, pois ninguém queria proximidade com aquele ser. Já corriam mais lendas do que histórias verdadeiras de nossa vítima. Foi quando a mãe, com aquele execrável sentimento maternal, resolveu pedir ajuda à Igreja. Sentia que sua filha não seria curada por benzedeiras ou pelos médicos de loucos, necessitava de algo mais.

Procurou, então, o bispo José, que há anos teria autorizado certo Padre Júlio a praticar o exorcismo, cerimônia para livrar as pessoas dos espíritos maus. Naquela época, era um padre pujante que servia bem a este propósito. Mas os anos foram passando e, assim como a Igreja, o padre exorcista estava em xeque, pois já havia titubeado em várias sessões de exorcismo. Em um inquérito instaurado numa determinada ocasião, o bispo já havia questionado veemente – “Mas me diga, por que não foi possível expulsar o anjo caído daquela criatura? A oração não foi eficaz? Ou faltou determinação do sacerdote?”. O padre havia reconhecido sua hesitação na incumbência, como se não tivesse plena certeza do que deveria fazer naquele momento. Mas se conteve nos seus comentários, embora às vezes chegasse a pensar que poderia ter sido um demônio muito forte. Mesmo não entendendo no seu íntimo, o bispo considerava se tratar de um pequeno lapso do Padre Júlio, que já tinha expulsado muitos demônios no passado. Por isto resolveu aproveitar o caso de Clarice e dar uma nova oportunidade ao exorcista.

Cabisbaixo, o Padre Júlio chegou e cumprimentou humildemente o bispo, na reverência de costume. Para surpresa do padre, o bispo explicou que lhe daria um novo embate com o demônio. – Está na hora de colocar fora duas dúvidas e hesitações, Padre Júlio. A vítima, mulher de nome Clarice, parece estar apenas atormentada, mal comum das mulheres, mas não é de terapia ou encorajamento que ela precisa. O Bispo vinha de longa experiência, sabia que se tratava de nosso poderio sobre a criatura, porém imaginava que o exorcismo bem feito poderia tirar Clarice de nosso domínio e restabelecê-la para o mundo da misericórdia. O bispo tinha consciência dos novos tempos, de pouca fé e relativismo, que abatiam a Igreja, mas acreditava que o Padre Júlio, tendo outra oportunidade, poderia ter seu triunfo sobre nossa maldição.

No entanto, a fraqueza dos seres humanos facilita muito o nosso trabalho. Nós, demônios, não precisamos da crença das pessoas. A simples condição da mente humana é suficiente para colocar-nos no controle da situação. Assim foi com Clarice, mal amada, autoestima em baixa, um ser que já não pensava mais em si. Foi muito fácil tomá-la em possessão. Quando a família se deu conta de que algo acontecia, nossa história já vinha de longa data. Era assustador aos seus próximos vê-la se mutilando o tempo todo, até que a mãe resolveu chamar o tal padre.

Mais por motivação do próprio bispo, não demorou para que o Padre Júlio sentenciasse que Clarice estava em um estado de possessão demoníaca e iniciasse todo o ritual autorizado para expulsar o espírito maligno de seu corpo. Mas aí é que reside o problema. Eu não estava no seu corpo, já estava na sua mente e ela me via de igual para igual. Rezas e esconjuros não conseguiam trazê-la de volta. Clarice gesticulava muito e quando olhava para o nada, via os meus olhos fixos nos dela, parecia esperar que eu desse a ordem final. Chorava, uivava às vezes, como um cão sem dono. O padre e seu ajudante tentaram amarrá-la, mas sua força era terrível. Eu tinha o poder impassível da situação.

Por um segundo, como ele ainda hesitava sobre o que havia ali, permiti que o padre percebesse minha sombra no escuro do quarto, próxima da janela do sexto andar. Foi aí que ele se deu conta de que naquela noite já alta, o perigo era grande. Quando decidiu pegar a cruz, desviando o olhar de Clarice, eu a fitei, a dominei e ordenei. Apenas dois passos atrás foram suficientes para Clarice se colocar diante da janela e antes que o padre tivesse tempo de invocar a cruz, diante da manifestação da minha força demoníaca, ela lhe roubou o precioso amuleto, com o qual lhe penetrou o olho e arrastou o padre consigo janela abaixo. Restou somente o barulho do impacto dos seus corpos no chão. Calaram-se afinal o martírio de Clarice e a hesitação do padre.

Eu agora já vou longe, em busca de outro ser em desatino.

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