Um Conto Siciliano

Sergio Vinicius Ricciardi

O sol brilhava numa autêntica manhã siciliana de 1920. A brisa mediterrânica sacudia as árvores e arbustos do campo de caça mais ao norte de Palermo. Fragone carregara a sua espingarda e aguardava pacientemente que as perdizes , assim teria o almoço de domingo da família garantido. Vendeiro e cozinheiro por excelência, administrava a Cantina Surriento, que tinha pertencido aos seus pais e antes aos seus avós. Lá os frequentadores podiam saborear os mais autênticos pratos italianos e ainda levar as compras de verduras e frutas para a semana.

Fragone mandava em tudo no seu negócio, menos em sua esposa Laurina, também conhecida como Mamma Fragone, que mandava nele e em todo resto... O casal tinha no filho Luccio, oficial do Exército Italiano, sua alegria e orgulho. Tudo estava perfeito. Até aquela trágica manhã.

A Sicilia também era conhecida por ser o berço da máfia, uma organização criminosa que tem suas origens perdidas nas névoas do tempo. Cheia de rituais e com uma profunda ênfase nos laços de sangue, era comandada na ilha pela Família Tomasino. O chefe das famílias, também conhecido como “Don” (o padrinho), administrava os negócios ilícitos da ilha (bebidas, jogo, mulheres) juntamente com um subchefe – em geral seu familiar –, um capitão (capo) e um conselheiro (consigliero), figura que dava o aval às principais decisões.  Naquela manhã, Dom Tomasino, o chefe supremo dos negócios da ilha, também havia ido ao campo de caça.

Fragone observou as duas perdizes paradas e fez a mira. Quando foi disparar, teve um acesso de espirros e atirou a esmo. Mais além ouviram-se gritos. Quando Fragone foi verificar o que tinha se passado, deu de cara com um quadro pavoroso: Don Tomasino, o chefão da Sicilia, atingido no peito, jazia caído ao chão. A munição de caça era fraca, fez um estrago mais superficial, mas Tomasino, ao ver o ferimento e o sangue, enfartou e morreu de susto. Seus acompanhantes avisaram o pobre vendeiro para se preparar para o troco, ou seja, antes daquele dia terminar ele estaria morto.

O vendeiro chegou em casa branco como um lençol, reuniu a família, os agregados e contou o caso. O filho Luccio estava servindo na Itália. As cozinheiras e funcionárias da cantina desataram a chorar e falar alto e ao mesmo tempo, numa algaravia em que não se entendia nada. Sua sogra, Nona Andolini, queria sair imediatamente para chamar o alfaiate e o agente funerário para tirarem suas medidas. Foi quando Mamma Fragone, tranquila e impassível, decidiu tomar as rédeas do caso. Já que Deus havia lhe dado um limão, por que não fazer dele uma limonada? Ao final daquele dia, seu marido Fragone não só estaria vivo, mas tiraria o máximo proveito da situação.

Laurina e a família aguardaram, pacientes, a visita do assassino-chefe, o capo da família Tomasino. Lucca Brasa era conhecido como “o terror da Sicília” por sua folha corrida de crimes. Fragone deixara-se afundar, suado e tremendo, na cadeira de espaldar alto da sala. Só Laurina parecia inabalável. Foi quando Lucca chegou, mais pontual que a própria morte, às seis badaladas noturnas dos sinos da Igreja. À tiracolo, numa caixa de violino, trazia “La Cantante”, como era conhecida sua metralhadora de estimação. Fragone era a própria imagem do desespero. Laurina recebeu Lucca e lhe serviu um café, como se o motivo da visita fosse uma amabilidade entre amigos. Antes que ele executasse a missão que lhe haviam designado, pediu para ter uma breve conversa com ele. Lucca era um assassino, mas nunca um bruto. Não tinha porque não atender um pedido de uma futura viúva. Foram a um aposento mais afastado:

- Lucca, quero saber em primeiro lugar como está tua bambina, Isa.

- Uma tristeza, Mamma Fragone... Três meses. O desgraçado fugiu para a América. Não pude pôr minhas mãos nele.

- O meu Luccio ainda gosta dela. Ele vem pra casa no início do mês. Quero te fazer uma proposta...

- Proposta?

- Eco. Luccio é um oficial do Exército Italiano, tem uma bela carreira pela frente. Ele gostaria muito de tomar Isa como esposa e assumir esse filho. Isso poderia unir nossas famílias.

- Não sei o que dizer... Isso salvaria a reputação de minha filha, lhe daria um futuro.

Sim Lucca, é isso que nós, eu e tu, queremos.

- E o que eu poderia dar em troca deste gesto tão grandioso, Mamma?

- Quero que poupes a vida de meu esposo. E mais: quero que mates os subchefes e capos das outras famílias. Quero que sejamos a “Família Fragone”.

Fez-se um silêncio. O assassino não disse nem que sim, nem que não. Após um tempo, Mamma Fragone levou Lucca até a porta. Ele olhou Fragone afundado na cadeira e fez um gesto com o indicador, passando pelo pescoço. O vendeiro pareceu encolher. Olhou para Laurina e piscou o olho. Ela o acompanhou até o portão, confabulavam. Quando voltou, Mamma disse diante de todos:

- Vamos chamar o alfaiate e o funerário. Precisamos preparar o Fragone para um outro tipo de vida.

Às nove horas da noite, tocou novamente o sino. No salão anexo à Cantina Surriento, Mamma Fragone, Nona Andolini e alguns agregados e vizinhos velavam Fragone, que estava impecável num terno escuro feito às pressas pelo alfaiate Vincenzo, especialmente para a ocasião. Quem olhasse para o morto, dizia que simplesmente dormia. A família ocupava um lado da improvisada capela mortuária. Do outro lado, chegando um a um e recebidos por Lucca Brasa, estavam os subchefes e capos das outras cinco famílias da ilha, comparecendo para certificarem-se de que a justiça por Don Tomasino tinha sido levada a cabo. Quando todos cumprimentaram a viúva e sentaram em seus lugares, de repente o morto pulou de seu caixão em direção à família e Lucca sacou de sua metralhadora. Antes que entendessem o que estava acontecendo, as principais figuras da máfia siciliana foram crivadas de balas e jaziam mortas diante dos Fragone. Agora, para que o plano de Mamma Fragone fosse coroado de êxito, faltava somente um mero acordo diplomático com os familiares daqueles ilustres defuntos.

Sem seus subchefes e capos, as famílias depostas, representadas por idosos, viúvas e enlutados herdeiros, não tinham mais possibilidade de vingança ou retaliação. Só restava reconhecerem a sucessão dos Fragone e de Lucca Brasa no poder. O casamento dos felizes jovens Luccio e Isa foi um deslumbre, e emocionou suas famílias e conhecidos. Faltava agora o reconhecimento formal do novo chefe da máfia, o novo Don... Lucca. Acumularia as funções de subchefe e capo, e Mama Fragone assumiria a função de conselheira (una belìssima consiglierina), tomando as decisões mais difíceis e estratégicas.

As cinco famílias chegaram à Cantina Surriento, como numa procissão, uma após a outra. Fragone, ao lado de duas panelas em que se preparava um molho de tomates e um nhoque ao sugo, sentava-se para que os visitantes beijassem sua mão e o saudassem como o novo “Don”, levantando os olhos a ele e dizendo: “Don Fragone”, ao que lhes respondia com dois beijos no rosto e um caloroso abraço. Ao seu lado, Mamma Fragone controlava o movimento e saudava os que ali chegavam. Ela seria a primeira mulher siciliana a comandar a máfia, um marido e uma cantina...

Nenhum comentário:

Postar um comentário