O Menino da Porteira



Ana Luiza Tonietto Lovato

Aprendi de pequeno. Pra salgar boca de homem, só a carne do charque. E é no fundo do pensamento que tenho marcado, a ferro e fogo,  o último dia em que cogitei derramar uma lágrima. O pai me olhando, parado qual estaca, querendo ver se eu chorava. Os parentes ao redor, o caixão em cima da mesa da cozinha. As flores que cobriam parte do corpo eram as que ela mesma plantava na frente da casa. Eu queria chorar, claro que queria, mas era certo o tapa na orelha se não provasse que já era macho. No dia seguinte era meu aniversário. Sete anos. Não teve a benção da mãe. Só teve ela deixando o vazio por tudo,  fazendo do pai uma carranca só. Nem mesmo o choro dos irmãos pequenos, nem mesmo isso, se ouviu naquele dia.

Depois, viver na estrada foi a minha escolha, a poeira do chão grudada na pele. Peleando assim, levando a boiada,   conheci o menino. Avistava ele de longe, sempre com a porteira aberta, me esperando. Era o gado passar para ele me pedir: toque o berrante, seu moço. Gostava de ficar ouvindo,  a inocência guardada no espelho do olho. A inocência que ainda não sabia de quanta dureza pode ser feita a vida. E ele era o contentamento que ia comigo, fazendo da voz do berrante a música a me acompanhar.   Mas de tudo naquele menino, o que eu levava calado aqui dentro era o  Deus vá lhe acompanhando, dito sempre em despedida.  Ele podia ser o filho que eu não tive, ou que se tive o mundo não me mostrou. Palavra de criança é palavra verdadeira.

Foi numa viagem de volta que eu vi a porteira fechada pela primeira vez.  O couro do coração me laceou o peito antes que eu apeasse do cavalo. No ranchinho logo ali, uma mulher chorou mais forte quando me avistou,  chicoteada pela dor do que ia me contar.

Mirando pra onde ela apontava, enxerguei uma pequena cruz no estradão. Chegou tarde boiadeiro, foi um boi quem levou meu menino.

Minha  pele rasgou com a secura das minhas lágrimas e,  desde aquele dia, pra onde quer que eu olhe,  vejo o menino  que não vou encontrar outra vez.  É imagem que silencia.  Naquele pedaço de chão, o meu berrante eu não toco mais.

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