Doutro Jivago



Sonia Regina Rocha Rodrigues


         O vereador Otacílio era um homem de ideias. De moinhos de vento a árvores de poemas, ele defendia tudo que prometesse tornar esse um mundo ecológico. Que maravilha, um planeta onde a humanidade respeitasse as outras espécies, onde homens, bichos e plantas repartissem o espaço com harmonia!
Apesar das risadas dos outros edis, Otacílio ia já pelos vinte anos de carreira política quando seu amigo de infância foi eleito prefeito. Conhecido como “Justo” por sua retidão de caráter, o novo prefeito pediu ao amigo algumas sugestões.
- Escreva aí o que você acha que a cidade precisa, com detalhes. Vou estudar suas ideias.
        Otacílio, entusiasmado, passou o fim de semana a escrever. Segunda-feira pela manhã, entregou dez folhas meticulosamente datilografadas, contendo 50 de melhores idéias ao prefeito, que lhe prometeu aproveitar ao menos uma.
        Otacílio aguardou, ansioso. Seu projeto de uso da energia solar era o mais promissor, pois a região era quente e ensolarada, mas ele tinha esperança que algumas de suas sugestões  sociais merecessem alguma atenção: jardins e hortas comunitárias, currículo profissionalizante onde alunos da periferia fossem engajados em atividades úteis ao bairro, estagiários oferecendo atendimento gratuito de excelente qualidade como cabeleireiros, sapateiros, alfaiates, gráficos, melhorando a vida da população carente.
         Pequenos empreendedores poderiam alavancar a economia local aproveitando o artesanato feito com folhas de bananeira e com a criação da indústria do lixo reciclado, paralelo ao projeto de postos de recolhimento do lixo tóxico: pilhas, lâmpadas fluorescentes, radiografias, remédios vencidos, aparelhos eletrônicos. E mais! A substituição das embalagens plásticas por vidros e sacolas de papel. Nos séculos em que a humanidade desconhecia o plástico, os animais marinhos...
         Um tapa no ombro o acordou de seus devaneios. Era o prefeito, a comunicar que, inspirado pela postura ambientalista do amigo, mandara espalhar gatos pelos jardins da praia, uma maneira ecológica de combater os ratos.
         O pobre vereador protestou, pálido. Os gatos transmitem doenças, iriam espantar os passarinhos e ele não escrevera nada sobre gatos em sua lista de propostas! Claro que não, a idéia fora mesmo do prefeito, mas... inspirado na visão de mundo de Otacílio.
         - O que vou aproveitar de suas ideias são os girassóis.
         Girassóis? O prefeito se afastou e Otacílio franziu a testa, perplexo. Aí lembrou-se: no ano anterior, voltando de férias na França, trouxera para o amigo uma réplica de um quadro de Van Gogh, comentara sobre a primavera em Provence e sobre os pequenos encantadores girassóis europeus, muito menores que os nossos. Os girassóis certamente não estavam entre as 50 ideias entregues ao Justo!
         No dia seguinte, ao caminhar pela orla, Otacílio tropeçava nos gatos e reparou horrorizado em várias pessoas trazendo pratinhos com leite e comida para os bichanos. Enquanto isso, do bairro do Zé Menino até o bairro da Ponta da Praia, dúzias de jardineiros arrancavam lírios, margaridas e camélias, substituindo todas as flores por centenas de girassóis. Para completar o desastre, não faltou nem o jornalista, ao lado da câmera, focalizando o desditoso personagem desta história.
         - Estamos aqui, caros telespectadores, com o autor da idéia de remodelação dos jardins da orla da praia, cartão postal de nossa cidade. O vereador Otacílio.
         Em vão o coitado protestava. O jornalista insistia, implacável: “o próprio prefeito afirmou na edição matinal que a idéia dos girassóis é do companheiro de longa data, que também o inspirara no controle ecológico dos ratos.”
         Otacílio, suando profusamente, levou as mãos ao peito e sentou-se, cônscio de seu suicídio político. Nos meses seguintes o prefeito passava apressado pelo amigo, sempre a agradecer pela feliz lembrança dos girassóis a embelezar nossas praias. (e a engordar os ratos, pois quanto aos gatos...)
         Nem o prefeito nem Otacílio foram reeleitos. Até o final do mandato, o ingênuo Justo interpretava como elogios as exclamações “aí vai o homem dos gatos.” Já Otacílio abaixava os olhos e corava ao subir as escadarias da prefeitura e ser cumprimentado pelo apelido: Doutor Jivago.

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