Desceu a escada do avião e colocou o pé direito na
pista da base aérea. O joelho doeu. Esquecera do estilhaço naquela perna, deveria
ter pisado com o outro pé. Apesar de a dor ser quase contínua, não se
acostumava.
Era o último a descer. Olhou por um instante os
soldados que se retiravam, capengueando, com as bagagens a tiracolo.
Apressou-se a também deixar a pista. Não havia parentes para receber nenhum
deles. A guerra não acabara, tinham apenas desmobilizado aquele regimento.
Ganhara uma licença inesperada. Fora uma volta apressada, sem tempo para
avisarem as famílias.
Dois anos antes, a convocação também o pegara de
surpresa. Sabia da mobilização do pessoal da reserva, lógico, mas achou que
demoraria mais para chegar na sua cidade. Lembrou do pânico; do pensamento
mágico que seria dispensado na última hora; dos enormes olhos verdes da esposa
pela janela do ônibus, se despedindo, quando a viatura do Exército se afastava;
da sensação de irremediável solidão no avião que deixava o país.
Agora pegava o ônibus perto da base aérea para
voltar para casa. A paisagem não mudara muito. Algumas casas viraram prédios,
um shopping fora construído. À medida que rodava para os bairros mais
afastados, a paisagem era cada vez mais semelhante à que lembrava. O ônibus
estava quase vazio, e as poucas pessoas o olhavam de soslaio. Seria porque sua
presença evocava a lembrança da guerra? Talvez nem fosse por isso. Um negrão de
quase dois metros de altura com a farda do Exército chama mesmo atenção.
Tentou se acomodar no banco, o joelho doeu de novo.
Aquele ferimento iria demorar para resolver. No dia em levou o estilhaço de
morteiro na perna estava há mais de 12 horas deitado no chão, sem comer ou
dormir, com terra e pó nos olhos, na boca e no nariz. Pensou nas histórias de
guerra que já lera, do clichê de que os soldados ficam com "o cheiro de
sangue impregnado nas narinas". Balela. O pior mesmo era o cheiro podre do
barro velho, da lama estagnada. Quando ouviu o assobio fininho se aproximando,
fechou os olhos e esperou. Ato contínuo, veio o estrondo, o deslocamento de ar
que o chutou cinco metros longe, a nuvem de terra e pedras que lhe caiu por
cima. Na verdade não fora um estilhaço que o atingira, e sim a energia e o
material deslocados na queda do projétil. Claro, se um morteiro daqueles
tivesse lhe atingido, seria agora apenas uma medalha, não estaria ali descendo
a rua com a perna doendo. Mesmo assim, aquela avalanche – que além das pedras
incluiu o corpo de um colega de batalhão que teve o azar de estar mais perto do
epicentro da queda - fora o suficiente para lhe fraturar a perna e torcer o
joelho. Até que tivera sorte. Em dois anos de front, não sofrera ainda nenhum
arranhão. Tirando pela surdez progressiva, inevitável devido aos tiroteios,
vinha escapando ileso.
Saltou do ônibus, andou um pouco, dobrou uma
esquina: estava na sua rua. Começou a descer a rua a pé. Ruazinha quieta, de
paralelepípedos, muitas árvores. Só casas, nenhum prédio. Ninguém na rua naquela
manhã. Um cachorro latiu em algum lugar. Seguiu rengueando, arrastando a perna
dolorida. Aqui sim, estava tudo como deixara; diria que até as peças de roupa
nos varais eram as mesmas.
Parou na frente da casa. Nem soube o que pensar
primeiro. Estava igual. Quer dizer, um pouco mais velha, mais descascada; o
portãozinho um pouco mais enferrujado. Mas a mesma. Continuava inclusive sem
campainha no portão. A janela da frente estava aberta. Imaginou-se lá dentro, a
cara de feliz incredulidade da mulher; antecipou o abraço e as lágrimas. Se
pudesse, choraria.
Armava os dois braços para bater palmas quando a
criança apareceu na janela.
Estacou, o gesto congelado. Era uma menina. Devia
ter um ano de idade, não mais que isso. Loira. Linda. Os imensos olhos verdes
da mãe. A mesma boca rasgada. Apareceu engatinhando, decerto subira no sofá que
ficava embaixo da janela. Ela lhe fitou fixamente por um minuto. Depois sumiu
lá pra dentro.
Ficou congelado na calçada por um instante. Olhou a
casa. Depois, aproveitando que ainda estava fardado, ficou em posição de
sentido, fez meia-volta e rompeu marcha. A guerra ainda não terminara.
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