Rafaela Bressan
Dentro do meu carro, passando pelas grandiosas
árvores da avenida que dá para minha casa, vislumbro as sombras indo e vindo em
minhas mãos, aquecendo os dedos presos ao volante. Contemplo os vira-latas
bocejando nas ruelas esquecidas pelo sol. Sei que aquela tarde de primavera
ficará cravada em minha memória com seu céu de luzes e sombras.
Junto com esta paz, me veio um tremor na espinha, um
arrepio tomou conta de todos os meus nervos e abalou toda a minha estrutura.
Foi numa dessas tardes que nossos vazios se encontraram, num olhar mágico e
passageiro, nos unindo pela eternidade. Num impulso, destes que surgem do
ventre e ecoam pela alma, paro em frente à sua casa.
Você está
sozinha, à deriva em seu mar de angústia, pronta para marcar em seu corpo mais
uma tempestade. Tento puxar-lhe para fora de seus espinhos, mas as lágrimas já
não são suficientes para escoar sua aflição. Você só deseja minha compreensão,
que eu entenda que apesar do corte ser profundo, ele é inofensivo, e lhe traz a
paz que eu havia experimentado segundos atrás.
Relutantemente concordo em vê-la se flagelando. Num movimento rápido e
suave, ela traça uma linha precisa entre o meio e a beirada de seu antebraço. Vejo
seu rosto ficar leve, ela encosta-se à cama e fecha os olhos, esboçando um
tímido sorriso nos lábios. E por alguns gloriosos instantes uma brisa
primaveril marca seu semblante.
O sangue, escuro e quente, começa a verter num fluxo
lento, pintando seu braço. Sento ao seu lado, pego uma caneta na minha bolsa,
seguro o braço ensanguentado e desenho sobre o corte um barco. Ela sorri
gentilmente e tomando a caneta da minha mão, desenha em meu pulso uma âncora.
Tudo que fizemos foi relembrar nosso primeiro
passeio, quando tomamos sorvete de maracujá sentadas numa muretinha, perto da
casa dela. Mureta hoje coberta por uma vasta coroa de cristo, inviabilizando
crianças sonhadoras de apreciar à tarde com seu doce favorito. Lembramos caladas
daquele tempo, unidas pelo silêncio. Não voltaremos a ser as crianças tímidas
de outrora, e jamais recuperaremos a inocência de anos atrás. Forjamos nossa
amizade a ferro e fogo, numa cumplicidade,maior do que qualquer medo ou julgamento.
E mesmo quando tempestades se formam
em dias belos, nós temos um lugar para nos proteger. E se não fosse por aquela
caneta, desenhando, sem repugnância, todo o amor, toda a empatia que um ser
humano é capaz de demonstrar a outro, se não fosse a lembrança vívida do
momento que nosso olhares se cruzaram e a irmandade cósmica que nos uniu, se não fosse por aquela
amizade, eu teria perdido para a dor a irmã que nunca tive. Depois daquela
tarde ela jamais precisou do êxtase que os cortes profundos no braço lhe
causavam, ela entendeu enfim que existia alguém que a compreendia, e isso já
lhe bastava.
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