Chris Glasner
A chuva tem esse dom de me pegar pelo
caminho. Só dobrara duas esquinas, quando o céu liquefez seu cinza claro em
gotas espessas e frias. Decidi voltar para casa. Talvez me atrasasse,
arriscando encontrar o metrô em piores condições do que os pacientes à minha
espera, vomitando pernas, braços e corpos inteiros porta afora. Mas voltaria
para casa. Precisava abrigar-me com a prudência, quiçá tardia,ansiada por minha
mãe desde que o frio de São Paulo nos deu boas vindas. Chegamos num inverno, eu,
ela e meu pai. Alguns invernos depois, ela partiria deixando-nos sozinhos e
envoltos em estranha frieza.
Casaco em punho, guarda-chuva nas mãos
e no bolso, o celular a vibrar. Melhor não atender. Passagem de plantão é o
palco cotidiano de um drama encenado por personagens exaustos e impacientes. O
telefone fixo, entretanto, começara a tocar. Estranho, em dias modernos parece programado
no modo silencioso. Ignoro, tomado pela angústia dos culpados, e saio às
pressas. À espera do elevador,a vibração do celular passa a incomodar-me mais do
que o discurso queixoso prestes a ouvir. Atendo. Era da
Casa de Repouso. Meu pai desaparecera.
Há dois anos precisei interná-lo. Ele
já não sabia quem eu era, já não sabia quem ele próprio era. Na verdade, desde
a morte da minha mãe, pouco soubemos de nós. O Alzheimer começara logo após sua
aposentadoria. No início sofrera a cada palavra fugidia, arredia às suas
intenções, irremediavelmente indomada. Para um professor e leitor voraz, a
morte do sentido era o sentido da sua morte. Para onde teria ido a sua memória,
em que lugar haveria de ter se refugiado?
As lembranças da minha infância têm
seu cheiro, suas mãos e sua voz. As lembranças da minha infância têm o olhar da
minha mãe sobre nós. A terra molhada, a chuva benfazeja, a felicidade da manga
comida no pé e o meu pai fincado no chão, qual tronco robusto, a impedir-me a
queda. O meu pai a ensinar lições, o meu pai a corrigir lições, o meu pai a orgulhar-me.
Líamos juntos contos mágicos sobre a lua, as histórias de sacis e os poemas de
Manoel de Barros, que ele dizia ser igual a nós, um plantador de palavras.
Ao chegar no abrigo, já o tinham
encontrado. Estava encharcado, com tanta água sobre a face que as lágrimas
brincavam de ser chuva, mas ele, de fato, chorava. Parecia um menino assustado,
ainda perdido. Abracei meu pai, sem nada dizer. Levaram-no. Na rua, chamei um
táxi, disse-lhe meu destino e olhei para a chuva, sentindo os olhos da minha
mãe sobre mim. Comprei duas passagens para aquela mesma noite.