O mendigo

Luis Henrique Reis Volkart

Parado entre a porta e o corredor, Paulo olhou pela última vez para dentro de seu apartamento. Respirou fundo, pensou um pouco e fechou a porta. Com um olhar perdido desceu as escadas que davam até a rua. Nas mãos, apenas uma sacola de plástico que não deixava mostrar seu conteúdo. Lá fora, uma chuva fina caía sem dar tréguas. Já era o meio da tarde de mais um domingo de julho. Para Paulo, esse seria um domingo diferente. Alcançou a rua levando mais tempo do que costumava levar. As calçadas estavam molhadas, uma leve brisa soprava alguns pingos em seu rosto. Não estava muito frio, mas a temperatura dava sinais de que iria baixar rapidamente.

Paulo começou a caminhar em direção ao Parque Central. A distância era de aproximadamente cinco quarteirões de seu apartamento. Em razão da chuva, as ruas estavam praticamente desertas. Poucas pessoas se aventuravam a estar fora de casa com aquele clima. Paulo caminhava sem muita pressa. Os pensamentos vinham à cabeça como se fossem uma metralhadora disparando sem parar. A vida desfilava em sua mente de forma aleatória. Cada vez que sentia algum pensamento colocar em dúvida sua decisão, apertava o saco plástico que estava embaixo de seu braço e caminhava com mais determinação.

Após meia hora de caminhada, chegou ao Parque Central. O local estava praticamente vazio. Paulo caminhou até o lago situado na ala sul. Aquele seria um bom lugar. Chegando lá, sentou-se em um banco que lhe oferecia uma visão privilegiada do lago. Alguns patos nadavam alheios a chuva e ao frio que já havia aumentado. Colocou o saco plástico ao lado. Fitou o horizonte com um olhar perdido e pensativo. Não, não queria mais pensar, já havia decidido o que fazer. Pegou o saco e começou a abri-lo. Foi quando apareceu alguém. A aparência não era muito boa. As roupas eram gastas e encardidas. O cheiro exalado pelo homem era terrível.

- Olá, tem horas amigo? – perguntou o sujeito com voz cordial.

Paulo não respondeu. Procurou ignorar. Pensou que talvez assim fosse embora e não o incomodaria mais.

- Olá, tem horas amigooooooo? – perguntou novamente o indivíduo em um tom de voz mais alto e firme.

Vendo que aquela figura não iria embora, Paulo respondeu:

- É quatro e meia.

- Meu Deus, como o tempo voa nessa época do ano – respondeu o intruso.

- É! – murmurou Paulo.

- Ah, você também acha? Agente não tem tempo de fazer quase nada, quando vê, o tempo passou. E este clima horrível, eu estou todo molhado, meus ossos estão congelando - o sujeito falando e aproximando-se mais de Paulo.

Paulo olhou para ele de cima para baixo não entendendo o que aquele moribundo poderia ter para fazer. Era um desocupado com certeza.

- Se você não se importa, eu gostaria de ficar sozinho – respondeu Paulo com um tom de voz firme.

- Ah, um solitário! Eu percebi de primeira. Você sabia que a pior coisa para um solitário é ficar só? A solidão vai destruindo aos poucos a pessoa. Você acha que tá tudo bem e de repente bum, a depressão. Não precisa se preocupar amigão,eu vou lhe fazer companhia – sentou-se o sujeito no banco bem ao lado de Paulo.

- Olha, eu já falei que gostaria de ficar só. Será que você poderia respeitar meu desejo -Paulo encarando o intruso com a fisionomia fechada.

- Oi meu amigo, fazendo sua corrida diária? – o homem gritando para uma pessoa que passava correndo fazendo Cooper..

O corredor apenas deu uma leve virada com a cabeça para ver quem estava lhe chamando. Sem tomar conhecimento, continuou sua corrida.

- Parece que ele não te conhece cara – observou Paulo.

- Eu também não conheço aquele sujeito. Mas é sempre bom fazer novos amigos aqui pela vizinhança – respondeu o indivíduo com um sorriso de satisfação.

Paulo começou a ficar nervoso com aquela figura atípica ao seu lado. Seu plano havia se desenrolado tão bem até o momento. Aquele lugar, aquele dia já haviam sido escolhidos há meses. Ele teria que dar um ultimato ao intruso.

- Vou pedir mais uma vez.Você poderia me deixar sozinho agora! Tudo o que eu quero é um pouco de privacidade - Paulo encarando o homem e empurrando-o com o braço.

- Ei, calma aí amigo, sem violência! Eu estou aqui para lhe fazer companhia. Um amigo não briga com o outro. Vou lhe dar um pouco de privacidade – o sujeito apenas virou o corpo um pouco para o lado mas continuava observando Paulo com o canto dos olhos.

- Só me faltava essa – Paulo falando alto.

- Qual seu nome amigão do peito?

- Não te interessa!

- Muito prazer, meu é John Wayne – o homem com um sorriso largo no rosto.

- Ah é! Onde está o cavalo John?

- Meu Deus, tava aqui agora mesmo. Horse, horse, onde você está? – o sujeito gritando e procurando algo ao redor. – Não dá mais para confiar nesses cavalos hoje em dia. É só alguém vir e oferecer um pouquinho de grama e eles se mandam. Ainda dizem que são os melhores amigos do homem!

- Não seriam. Deixa pra lá – Paulo com a fisionomia fechada.

Paulo perdeu a paciência. Colocou a mão na sacola e puxou um trinta e oito niquelado. Já que aquela figura não saia dali, resolveu continuar seu plano assim mesmo.

- Ó meu Deus, o que você vai fazer com esta arma! Por favor, não me mate! Eu tenho mulher, filhos e uma cadelinha manca que está esperando eu voltar para casa para alimentá-la – o sujeito apavorado pulando para fora do banco.

- Eu não vou te matar seu imbecil! Você não significa nada para mim. Eu vou é me matar. Vou acabar com esta minha vida medíocre. Vê se me deixa em paz agora – gritou Paulo.

- Ah, ainda bem. Que alívio amigo, pensei que você ia enfiar uma bala na minha cabeça. Toma cuidado da próxima vez, você pode matar alguém do coração desse jeito - O homem falando com aliviado. – Mas por que você quer se matar! Sua vida não está boa? Sua mulher te traiu com seu melhor amigo? Perdeu tudo, está arruinado financeiramente?

- O que você é por acaso, um psicólogo? Meus problemas são particulares. Deixa eu ficar em paz. Vai cuidar da sua mulher, de seus filhos e de sua cadelinha manca - Paulo com um ar pensativo quase desanimado.

- Ah não, era tudo mentira. Sabe como é, um homem em pânico é capaz de inventar qualquer coisa. – o sujeito rindo.

- Idiota ! – observou Paulo.

- Não de tanto valor pra vagabunda ordinária. Logo ela vai se arrepender e irá voltar pra você - o indivíduo falando.

- Ei, olha como fala da minha esposa. Ela me traiu mas eu ainda a amo –argumentou Paulo.

- Eu sei como é. O homem arruinado financeiramente, traído no amor, ainda tenta se prender a um último suspiro de esperança. Depois ela volta pra casa arrependida. O imbecil aceita mentindo para si mesmo que é por causa dos filhos. Finge não notar nada quando passa e os vizinhos ficam comentando – o intruso falando em tom filosófico.

- O que você sabe sobre a vida. Você não passa de um pobre coitado que vive pelas ruas pedindo esmolas. Dorme ao relento. Fede como um animal. Suas roupas são uns trapos tão sujos que chegam a ser lustrosos. Faz quanto tempo que você não lava o cabelo. E banho? Sabe o que é isso? Você é o que a sociedade tem de mais repugnante - Paulo em um tom de voz ameaçador.

- Puxa amigo, você sabe realmente humilhar uma pessoa. Ta se sentindo melhor assim? Eu não fui minha vida inteira mendigo. Eu trabalhava, tinha uma casa. Tudo mudou só por causa das vozes que eu comecei a ouvir. Elas me perseguem por todos os lugares – o mendigo com um ar triste e melancólico.

- Ah, eu sei. A velha história da voz boa e da voz má. Do tira bom e do tira mau. – observou Paulo.

- Tá se achando muito esperto, um gênio, não é? Fica sabendo que não tem essa história de voz boa e voz má. As duas vozes que escuto são bem más. Uma vez eu discuti com meu chefe e uma das vozes mandou eu dar um soco na cara dele. A outra mandou eu arrebentar a cabeça dele com uma cadeira. Eu acabei fazendo as duas coisas pra não cria problemas entre elas. – o mendigo com cara de satisfação.

- Você é louco – observou Paulo.

- Como você descobriu, quem lhe contou, era meu segredo particular! – o homem preocupado. – Por isso que não dá pra contar nada pra ninguém. Eu prefiro muito mais conversar com as pombas. Evito dialogar com os patos, eles parecem que estão sempre rindo de nós. As pombas são diferentes. É só jogar migalhas de pão que elas ficam ao seu redor por horas conversando. O problema é que eu não entendo nada do que elas falam. Mesmo assim eu prefiro conversar com as brancas. As pretas são um mau presságio, não gosto delas, nem de comê-las.

- Você já falou bastante. Será que agora eu posso ficar sozinho? – Paulo falando desanimado.

- Não, não, eu não posso perder esse espetáculo. Eu quero ver você se matar. Daí eu chamo a polícia e eles me levam até a delegacia pra contar o que aconteceu. Posso tomar um bom café com os policiais e ainda comer um sanduíche. E enquanto eles não tiverem olhando, encho os bolsos com o que conseguir pegar. Ah, você me dá seus tênis? Tire-os antes de se matar, pode manchar de sangue e não sair mais – o mendigo fazendo cara de esperto.

- Quem disse que eu quero platéia – Paulo indignado.

- Eu conheço seu tipo. Já vi vários por aqui. Quem quer se matar não vem pra um lugar público. Por que não se matou em casa? Tinha medo que seu corpo só fosse achado dias depois quando os vizinhos não agüentassem mais o fedor de podre? – o mendigo em tom autoritário.

- Eu vim para cá pra ter paz em meus momentos finais. Não vou deixar um lunático me atrapalhar – observou Paulo.

- Olha amigo, eu posso ser louco, mas eu nunca vim da lua. Não que eu saiba! E se o parque tivesse cheio? Você ia dar um tiro na sua cabeça na frente de todo mundo? Eu acho que você não passa de um grande covarde, uma cacaca de gente. Seja homem, tenha caráter. Lute pela sua vida. Conquiste novamente o que perdeu. Uma bala na cabeça não resolverá seus problemas. E caso o tiro não lhe matar e você ficar com problemas cerebrais que o impeçam de tentar novamente? Eu não irei cuidar de você. Eu não sou tão amigo assim pra ficar trocando as fraldas geriátricas – o mendigo gritando com Paulo. - Olhe para mim. Eu não tenho nada e apesar disso não fico pensando em me matar. Busque forças dentro de você para resolver qualquer problema que venha a surgir.

- É, você tem razão. Sabe que no fundo você parece ser uma boa pessoa. Você até que tem bons pensamentos – Paulo olhando para o mendigo com afeição.

- Ah, não são meus. Eu li num livro que estava no lixo. Arranquei a página e tentei decorar por mais de um ano, eu acho. Mas eu sei que sou uma boa pessoa. Ás vezes eu penso que meu destino foi viver nesse parque pra ajudar às pessoas – o mendigo falando e observando o horizonte.

- Sabe que eu estou com uma fome danada. Você não quer ir até lá em casa e tomar um café, comer alguma coisa? Lá nós podemos conversar mais – Paulo levantando do banco.

- Já era hora amigo. Pensei que você não ia me convidar nunca, eu estou morrendo de fome. Eu quero comer aquele bolo de laranja que vendem na confeitaria da esquina. Ah, eu só tomo café com leite desnatado – o mendigo colocando o braço no ombro de Paulo.

Os dois saíram caminhando juntos. O mendigo havia proporcionado a Paulo uma nova chance em sua vida.

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