Ana Cristina Sampaio Alves
Enquanto repete mentalmente o
pedido feito diante de todos os bolos de aniversário de que se recorda, Cláudio
percebe o temor que o dia tão esperado lhe provoca: é hora de partir. Dezoito
anos se passaram desde que o recém-nascido fora deixado no orfanato não se sabe
por quem. Várias tentativas foram feitas para localizar a mãe ou o pai daquela
criança. Após alguns anos de procura, Cláudio foi autorizado para a adoção.
Visita após visita de casais ele via com esperança a chance de ter uma família,
um quarto bonito, brinquedos só seus. Mas, inexplicavelmente, nunca era
escolhido. Seus esforços para ser
bonzinho, engraçadinho, alegre e carinhoso eram percebidos mas, por alguma
razão, não suficientes para ser levado dali. Crianças iam sendo adotadas e
Cláudio permanecia. Maldizia o destino e sob inocente decepção bradava contra
seu anjo da guarda que, ao invés de protegê-lo e encaminhá-lo na vida, o
abandonara à sua própria sorte: “Se um dia eu encontrar meu anjo da guarda vou
perguntar por que ele nunca atendeu meu pedido de ter uma família. Queria ter
pais, irmãos, tios, avós. Por que só eu não consigo?”. Inúmeros aniversários
foram comemorados com choro e birra diante desses pensamentos, mas aquele
significava apenas que estava tudo acabado. Hora de deixar para trás as
esperanças, expectativas e frustrações. E Cláudio assopra as velinhas.
A primeira parada é num símbolo
da maioridade. No balcão, pede uma cerveja e fica a bebericar, em cada gole um
sonho novo. Tem que arrumar emprego e um lugar para passar a noite. No orfanato
lhe deram alguns endereços de pensões e uns trocados para se virar nos
primeiros dias.
De repente, gritos seguidos de
sons de tiros lhe cortam os pensamentos. Assustado, vê a correria no bar, mas
não consegue mexer um músculo. Algumas pessoas gritam e correm em sua direção.
Aglomeram-se olhando um homem que tomba ferido à sua frente. Cláudio se
aproxima do grupo e com assombro reconhece seu corpo estendido e ensanguentado.
Mais pessoas se aproximam e ouvem-se pedidos desesperados de ajuda. Muitos
choram, rostos chocados. Estupefato, Cláudio levanta o olhar e vê um homem a
lhe fitar diretamente do outro lado do bar. Não sabe de onde vem a certeza, só
que está diante daquele maldito que só agora resolve aparecer.
- Quer dizer que estou
morto?,pergunta Cláudio ao homem, que lhe responde com um aceno de cabeça.
- Mas por quê? Eu te chamei esses
anos todos e você só chega agora?
E num piscar de olhos Cláudio se
vê de volta à sua festa de aniversário no orfanato no dia anterior. Ao lado do
anjo, observa os parabéns, cuidadoras e crianças felizes, ele assoprando as
velinhas. E ali, bem atrás dele, próximos à parede está um casal a observá-lo.
O rapaz troca um olhar com o homem ao seu lado e sabe que é sua família.
- Morreram num acidente. Você não
estava no carro e foi trazido para cá por quem tomava conta de você, revela o
anjo.
De repente ele vê o casal o
abraçar enquanto corta o bolo. Olhar amoroso, um afagar nos cabelos. E o filme
de sua vida passa como que num segundo diante de seus olhos. Em todos os
momentos, aquelas figuras estão em algum lugar ao seu lado, com um sorriso ou
um olhar de apreensão.Nas doenças que teve nenhum deles saiu do seu lado na
cama, nas quedas estavam ali ajudando a curar a ferida. Sempre zelosos e
carinhosos. Sente um imenso amor por
eles e imagina como sofreram aqueles anos todos em que estiveram num outro
plano, sem poder cuidar do filho abandonado naquele orfanato. E imagina
imediatamente que vai revê-los. Finalmente vai ter uma família, nem que seja na
morte, ou na nova vida, porque não parece que está morto. Vira-se para o anjo e
nem precisa formular a pergunta.
Ao voltar o rosto para as cenas
que se descortinam naquela sala – ou será na sua mente? – começa a rever
momentos em que casais à procura de adoção vão conhecê-lo. Assiste a um casal se aproximar com um
brinquedo. Ele ainda no berço, a fitar aquelas caras engraçadas, braços que lhe
pegam no colo, lhe fazem cosquinha. Todos riem e o casal está feliz. Até que
atrás da cortina do quarto Cláudio vê seus pais. Leva até um susto com aquela
visão. Feições apreensivas. E o casal o coloca no berço, a mulher lhe dá um
último beijo e saem do quarto.
Noutras cenas ele está brincando no parque do orfanato quando chegam os casais interessados. Ao lado dele estão seus pais. E os casais passam ao largo e se dirigem a outra criança. Há cenas que ele se recorda, em outras era pequeno demais para lembrar. Em todas, a figura dos pais a lhe velarem, sempre com olhares cândidos, que se fechavam assim que Cláudio era avistado por um novo casal.
Um misto de angústia e revolta inunda seu coração. Então fora isso. Em 18 anos de vida não tivera uma única chance não porque fosse feio, como pensava, ou maldoso. Não estava sendo castigado por Deus, como passou a achar quando fez a primeira comunhão. O amor o impedira de receber amor. E agora estava morto. Aos 18 anos, sem nunca ter tido um lar de verdade, uma família real. Não poderia nem ter a sua própria família, casar, ter filhos, uma casa. Estava morto.
Vira-se para o anjo e de repente estão de volta ao bar, seu corpo ainda inerte no chão, as pessoas buscando socorro em alvoroço. Toda uma vida pela frente se fora. Nem revolta consegue sentir mais. É só a tristeza do abandono. A mesma que o acompanhou a vida inteira. E de repente o anjo lhe lança o olhar de derradeiro questionamento.
- Você quer encontrá-los?
Cláudio não sabe o que dizer. Apenas compreende que finalmente o anjo pode lhe atender. Mas ele já não sabe se isso é importante. Uma confusão se instala em sua cabeça. O coração lhe dói e ele olha para o anjo em desespero. O homem ao seu lado dá de ombros e no segundo seguinte não está mais ali, parte como se fosse uma miragem.
Lentamente Cláudio vai recobrando a consciência. Mãos experientes tentam reanima-lo. Olha em volta em busca do anjo, mas só vê a equipe de branco a lhe colocar uma máscara de oxigênio. Apesar de aturdido, não tem dúvidas de com quem esteve naqueles momentos de inconsciência e do que presenciou. Até que alguém, certamente vendo que é um garoto, lhe indaga onde estão seus pais. Cláudio revira os olhos como a buscar a resposta. Não sabe por que, mas percebe que pela primeira vez não está triste com a pergunta. Dá um suspiro e informa:
- Estão viajando, moço. Uma viagem muito longa. Não sei se vou encontrá-los mais.