Pedro Barbosa
Abri os olhos na primeira
noite quando ouvi um barulho seco. Não era como se uma porta tivesse sido batida
ou um trovão retumbado, era mais como aquele barulho que o laço dos carroceiros
faz quando atinge o cavalo. Quando sentei na cama percebi que meu quarto nunca
havia parecido tão assustador quanto naquela madrugada. A luz da rua refletia
os galhos de uma árvore fazendo garras enormes se projetarem na parede. Um
escuro ameaçador era visível abaixo de minha cama e o silêncio era absoluto,
com exceção daquela batida seca. Ela se repetiu duas, três, quatro vezes.
Apesar de na época ter apenas
sete anos e estar apavorado apertando meu ursinho de pelúcia, minha curiosidade
falou mais alto. Havia algo intrigante acontecendo na minha casa e eu precisava
saber o que era.
Assim que abri a porta do meu
quarto o barulho se repetiu. Agora parecia muito mais alto. SPLAC! Com certeza vinha da sala. Caminhei
pé por pé, sem fazer nenhum ruído. O corredor, que não tinha mais que 5 metros,
nunca pareceu tão grande. Quando finalmente cheguei ao final, estiquei a cabeça
lentamente e espiei.
A cena que vi me paralisou.
Senti cada pelo do meu corpo se arrepiar e apertei com força a mão no meu
ursinho. Finalmente as histórias de terror que eu adorava ler saíram dos livros
e chegaram na minha casa. Havia um monstro na sala.
Esse monstro não era como a
maioria dos que eu tinha visto. Não era vampiro, lobisomem, bruxa ou qualquer
outra criatura horrenda como a dos livros. Esse era um monstro que parecia com
o papai. Não que ele fosse totalmente idêntico: os seus olhos eram vermelhos
como os do papai nunca foram. Além disso, uma enorme poça de suor estava
marcando sua camiseta em volta do pescoço e uma veia saltava de sua jugular. Apesar
de parecer o papai, aquele mostro nunca poderia se fazer passar por ele. Sua
expressão, que era de raiva, ódio e rancor, se contrastava com aquela que eu
estava acostumado a ver: calma, tranquila e equilibrada.
O monstro estava sentado em silêncio
com um copo vazio na mão e uma garrafa com um enorme número 51 no rótulo em sua
frente. Quando largou o copo e ficou em pé percebi que na outra mão ele
segurava um cinto de couro marrom igualzinho àqueles que meu pai usava quando
saía para trabalhar.
Caminhou com frieza até o outro
lado da sala, onde percebi que mamãe estava. Ela ficou imóvel, encolhida,
acuada... Como o nosso cachorrinho Budy ficava quando papai brigava com ele por
ter feito xixi no lugar errado. Seus olhos estavam imóveis e arregalados.
Ele levantou a mão que ainda
segurava o sinto na direção dela e fez um movimento rápido. Meu susto foi tão
grande que fechei os olhos. A única coisa que sei sobre aquele gesto é que ele
fez o barulho se repetir. E ele se repetiu, repetiu e repetiu. Entre um
movimento e outro eu escutava apenas o choro baixinho de mamãe, que entre
soluços murmurava algumas palavras. "Monstro... O que eu te fiz?... Por
favor..."
Voltei rápido para meu quarto.
Fechei a porta e fui para a cama, torcendo para que ele não me encontrasse.
Fiquei quietinho no escuro escutando aquele barulho por mais algum tempo, até
que ele finalmente parou. O silêncio se tornou absoluto pelo que me pareceu uma
eternidade, e acabei pegando no sono de novo.
No dia seguinte eu
simplesmente não consegui tirar o monstro da cabeça. Cada vez que eu fechava os
olhos ele estava lá, com aquela expressão aterrorizante e aquele cinto na mão.
Percebi que mamãe também estava com medo do monstro. Quieta, encolhida, com os
olhos inchados. Não que fosse a primeira vez que ela estivesse assim, muito
pelo contrário, isso acontecia algumas vezes. Será que aquela não tinha sido a
primeira visita dele?
Pela noite, quando estava indo
dormir, contei para mamãe que eu estava com medo por que na noite anterior
havia visto um monstro. Ela abriu então um sorriso pela primeira vez naquele
dia e me disse que eu não precisava me preocupar, porque monstros não existiam,
eram fruto da nossa imaginação.
Mesmo assim passei aquela
noite inteira, e todas as próximas também, em estado de alerta. Eu deitava no
escuro e ficava esperando o monstro aparecer, e às vezes ele aparecia. Sempre
nas noites em que meu pai não estava em casa. Aquele barulho seco intercalado
com o choro baixinho da minha mãe e algumas palavras sendo ditas entre soluços.
Meu medo era tanto que eu nem tinha mais coragem de sair do quarto para
assistir, só ficava lá de tocaia esperando para saber se aquele não era o dia em
que o monstro viria atrás de mim.
Um dia então eu decidi que ao
invés de esperar ele chegar, eu que deveria ir atrás dele para salvar a mamãe.
Eu soube disso enquanto assistia ao Samurai
Jack no Cartoon Network. Se o Jack podia derrotar todos os monstros com sua
espada, por que eu não poderia derrotar um monstro também? Fui até a cozinha
escondido e peguei um enorme facão que papai usava para fazer churrasco e
escondi comigo. Eu estava pronto para enfrentá-lo.
Quando deitei para dormir
naquela noite sabia que ele viria. Quando o papai não estava em casa ele sempre
vinha. Esperei até tudo começar de novo, e começou do mesmo jeito de sempre,
com o barulho seco. Eu levantei e fui em silêncio até a sala, como da última
vez, mas agora eu segurava um facão ao invés de meu ursinho.
Ao espiar pelo vão do
corredor, o que vi parecia uma reprodução do que eu já havia visto: minha mãe
em um cantinho, acuada, com os olhos arregalados, e o monstro caminhando na
direção dela segurando o cinto. Até aquela garrafa com o 51 estava em cima da
mesa com um copo vazio ao seu lado. Tudo exatamente igual.
Quando ele chegou perto dela e
fez aquele movimento com o braço, fazendo o barulho mais uma vez, eu fiquei com
os olhos abertos, não fiquei escondido como da outra vez. Comecei a correr na
direção daquele monstro horrível. Quando cheguei perto simplesmente dei uma
facada na perna do desgraçado.
Foi como se o tempo tivesse
parado.
Eu vi, como se fosse em câmera
lenta, o monstro dar um urro que mais parecia o rugido de um leão. Ele olhou
para mim com aqueles olhos esbulhados, levantou a mão vazia e bateu ela com
força na minha cabeça. Eu fui lançado contra a parede e caí.
Depois disso, enquanto eu via
tudo em minha casa girar de maneira confusa, ainda assisti a ele virar com
muito mais fúria na direção da mamãe, gritar algo que eu não compreendi e dar
um forte soco na cabeça dela.
Apaguei.
Quando eu acordei novamente
percebi que um barulho de sirene estava invadindo meus ouvidos e que uma luz
vermelha piscava na sala. A dor na minha nuca estava muito forte e eu escutava
um zumbido. Só quando virei a cabeça para olhar novamente para mamãe é que
percebi que mais pessoas haviam chegado. Dois homens de branco estavam em volta
dela e um terceiro caminhava na minha direção. Fechei os olhos e dormi de novo.
Essa foi a última vez que a vi.
Na manhã seguinte ela faleceu no hospital devido a um traumatismo craniano. O
monstro fugiu e nunca mais voltou, mas acredito que ele tenha ido atrás do
papai, porque ele também nunca mais voltou para a casa depois desse dia.