Meu nome é Dias. Dias D. Sort.
Não é um nome, é um vaticínio. Eu sei. Coisas de pais neohippies da década de
60. 2060, entendam bem. Quase cinquenta anos depois, me acho aqui, talvez com
alguma sorte. Decidam vocês.
Naquela manhã resolvi ir ao
trabalho de carro. Sou um homem às antigas. Com a proliferação de implantes de teletransporte e a diminuição da população, as ruas ficaram mais vazias. Mas eu ainda não me acostumei com o efeito desse
dispositivo. Tenho visões.
Voltando àquela manhã, estava sentado
à mesa, lendo o jornal holográfico do dia, quando ela entrou. Sentou-se em
frente ao meu chefe que quase derrubou o café, mas manteve a pose. Ela não
percebeu ou fingiu não perceber o efeito que causava no ambiente.
Só tem homens no escritório. Só
tem homens no prédio. E no quarteirão também. As mulheres se rebelaram por
volta de 2087 e ocuparam Marte, fundando uma colônia inteiramente feminina. Na
saída, levaram os estoques dos bancos de esperma e os animais de estimação. No
Planeta Terra só tem homens e ratos. Atualmente, mais ratos que homens, já que
a reprodução foi descontinuada e todas as tentativas diplomáticas de trazê-las
de volta falharam.
Então, a visão daquela deusa era
algo semelhante à bomba de Hiroshima naquele escritório poeirento. Não tive
dúvidas, levantei e fui andando na direção dela. Precisva comprovar que não era
outra holografia. Fiquei perto o suficiente para observar a criatura.
Provavelmente sintética,feita no Japão, sob encomenda. Acabamento de primeira,
sem falhas na pele. Japão, não, devia ser russa. As bonecas robóticas japonesas
sempre tinham olhos enormes. Russa, com certeza. Loira, olhos azuis, meio
tristes, tailleur bem cortado. Coisa fina.
Meu chefe me olhou de soslaio e
disse – anote.
A história triste era a seguinte:
mestre desaparecido há dois dias. Sem contato. Pessoa importante da sociedade.
Não podia revelar o nome. Sua bateria estava acabando, se não encontrasse seu mestre
em 24 horas, o único com o código de acesso ao carregador, entraria em modo hibernação.
Inútil para sempre. Ninguém mais poderia usufruir daquela deusa cibernética.
Uma pena!
– Vá com ela – disse o chefe.
Todo meu corpo tremeu, pelo menos
as partes originais dele.
A limo flutuante ancorou na
varanda do escritório. Ela entrou. Eu atrás dela observando aquelas curvas
perfeitas. Deu o comando de voz – para casa - e o veículo partiu na velocidade
da luz.
Saíamos da atmosfera e entramos
em um daqueles condomínios orbitais que só se via em anúncios. A propriedade
era monumental. Um castelo cheio de serviçais. Ainda bem que eu era um homem
das antigas.
O mordomo nos recebeu com bebidas
e trajes prêt-à-porter encapsulados. Já era quase hora do jantar. Adentrei o
recinto empertigado no smoking sob medida automático. Ela trajava um longo azul
de veludo. Um decote mais profundo que o Grand Canyon. E ainda lia meus pensamentos obscuros.
Certamente, tinha o módulo empatia original de fábrica.
Enquanto meu olhar deslizava no
abismo do decote, me dei conta da bela armadilha em que caía. Onde estavam
aqueles olhos tristes? Não havia Mestre sumido algum,era um artifício.
Eu tinha poucos minutos para
pensar em alguma solução. Já imaginava ela e seu dono desfrutando das partes
originais do meu corpo - e no mau sentido do termo. Na hora, me arrependi de
não ter aproveitado a oferta do aplicativo de inteligência Smart Plus. Teria
que me virar com os meus instintos básicos mesmo.
Ela me guiou para um sofá enorme
e me serviu outra bebida. Percebeu meu desconforto e sentou-se bem perto de
mim. A boca carnuda, vermelha e entreaberta exibia uma língua nervosa entre dentes
perolados e discretamente alongados. A boneca era romena.Dei um gole rápido no
Brandy. Perfeito. Derrubei o resto do liquido no vestido azul. Afastou-se com
horror. Nenhuma mulher, sintética ou não, permanece bem humorada com um vestido
manchado.
Acionei o dispositivo de teletransporte
implantado no cotovelo esquerdo. Apareci no trabalho, conforme programado, nu
em pelo.
- Já chegou? – Perguntou o chefe,
sem demonstrar espanto.
Peguei a roupa sobressalente na
gaveta e me vesti.
- E o mestre sumido? Descobriu
quem é?
- Conde Drácula – respondi.
Ele riu. Eu não. Ainda sob efeito
do deslocamento molecular, achei os dentes do chefe muito pontudos para o meu
gosto...
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