Cara, vou te contar: a coisa não tá
fácil. Essa vida de quartel não é exatamente o que imaginava. Tenho que admitir
que tava meio influenciado pelos filmes de guerra, sei lá. O que tu pensa
quando falo em exército? Guerra, né? Todo mundo que entra lá por vontade
própria, que nem eu, sonha em pegar um fuzil e sair correndo pelo campo de
batalha, mandando bala. O som dos aviões te sobrevoando, as bombas caindo, o
cheiro de sangue, merda, pólvora. O barulho ensurdecedor. A necessidade em se
ter que se confiar tua vida a outro homem, só porque ele tá vestindo o mesmo
fardamento que tu, e ser capaz de se colocar em perigo para proteger esse
desconhecido. Atirar primeiro, perguntar depois. E nem me olhe assim, na hora
do vamo vê, a solidariedade termina. Não tem essa de “não vou matar um
inocente” ou “esta guerra não é minha, os figurões que se matem”. O lance é o
seguinte: sobreviver. É isso aí, velho. Adrenalina nas veias e nada na cabeça.
Agir no automático e continuar vivo.
Mas não tem nada disso. Quando me
alistei, achei que ia participar de um Call of Duty da vida real, mas não.
Passava a maior parte do tempo arrumando a minha cama, fazendo flexões e sendo
um pau mandado de todo mundo. Até a porra do cavalo tinha mais regalia do que
eu, caralho. Não sei o porquê, mas tinha a ideia louca de que iriam me ensinar
a ser uma espécie de herói, eu tava completamente errado. Viagem total. E o
pior, não tenho o menor talento pra ser soldado.
Descobri isso logo na primeira
semana. Me deram um rifle e não consegui acertar nenhum tiro sequer. Puta que
pariu, nada! Tô te dizendo, velho, nadinha. Tenho bom preparo, sou um atleta, rápido,
sou forte como um touro, mas um inútil com uma arma. Um perigo pra mim e pros
meus colegas.
Mas a maior das vergonhas não é não saber
usar uma arma. Eu compensei isso com as granadas, ninguém lança granadas melhor
do que eu. Se fosse americano poderia estar na liga de beisebol, de tão foda
que sou. O pior foi um dia que fomos atravessar um rio. Ele era cortando por
uma corda, com uma ponta amarrada em uma árvore em cada margem. A gente tinha
que pegar as nossas coisas, se pendurar de cabeça pra baixo na corda e
atravessar pro outro lado. Tu sabe que não sei nadar né? Então, velho, me
apavorei. Minhas pernas e braços tremiam. Só conseguia me ver desabando na água
e afundando que nem uma pedra. Olhava os outros e todos conseguiram. E eu ali,
imóvel, me borrando nas calças. Daí chegou minha vez. Peguei minha mochila e
coloquei nas costas. Cruzei a arma sobre meu dorso. Me pendurei na corda, que
nem um bicho preguiça, e fui. Cada pegada que dava sentia os músculos dos meus
braços fraquejando, meus nervos pareciam que iam se arrebentar. Olhei para
baixo e vi aquela água, um poço sem fundo, me encarando. Caí. Velho, eu caí
naquela merda de água gelada e afundei como pensei que afundaria. Podia ver a
corda e o céu. A água entrou pelas minhas narinas, pelos meus pulmões. Gritei,
mas só engoli mais água. O peso da mochila me puxava mais para baixo. Me
debati, sem resultado. Eu ia morrer, velho. E de maneira vergonhosa, sem nunca
sequer ter pisado em um campo de batalha. Sem honra. Sem heroísmo. Sabe aquele
lance de se ver momentos importantes da vida passarem ante teus olhos? Velho, é
verdade. Eu vi tudo. Meu primeiro beijo, com a Ritinha, minha primeira briga, a
vez que ganhamos aquele campeonato de futsal. Meus pais, irmã, tu, todo mundo.
E me perguntei: pra que isso tudo? Pra que morrer agora? Morrer num rio ou no
campo de batalha, tanto faz, porque eu não quero morrer. E acho que tava
chorando, mas como vou saber? As lágrimas se misturariam com a água.
Aí, quando já tinha até aceitado meu fim, ouvi uma
voz. Era só um ruído, sem sentido, no início. Mas depois pude identificar
algumas palavras e uma frase, era a voz do capitão. Ele dizia: soldado García,
fique de pé! Soldado García! Fique de pé! García, seu veado, de pé!
E velho, tu não acredita, mas daí me apoiei no fundo
do rio, com meus dois braços, me lancei pra cima e saí, livre. Respirei fundo,
aliviado. Toquei no meu peito e o senti se expandindo. O ar inflando meu
diafragma. Olhei para baixo e, caralho, a água não chegava a minha cintura. Uma
vergonha, uma puta vergonha. Mas não foi por isso que larguei não, foi porque a
porra da vida do quartel não é exatamente o que imaginava.
E pra ser sincero, velho, depois de eu quase morrer
afogado não tenho a menor vontade de sair dando tiro em ninguém. Sabe, velho,
essa história de herói de guerra é asneira. Call of Duty, uma bobagem. É muito
fácil matar pra evitar ser morto. Heroísmo mesmo é se recusar a matar, mesmo
quando tu tá na linha de frente. Até porque se o caminho para a glória for coberto
por um tapete de sangue, prefiro essa minha vidinha ordinária mesmo, que já ta
de bom tamanho.
J.R.C.
Porto
Alegre, 31 de março de 2015.
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