Carlos Eduardo Simão
Afonso
escolheu o velho casarão abandonado para se encontrar com Helena. Certa vez ela
disse que desde criança tinha uma curiosidade imensa de conhecê-lo sem nunca ter
coragem de vir, pois, sempre ouvira dizer que o casarão era habitado por
fantasmas e almas de outro mundo.
Ele desceu
a pesada escada de pedra no fundo do largo corredor, que em tempos melhores foi
uma das varandas que circundaram a velha mansão. O lugar fedia a mofo e urina. No
chão de terra batida havia várias poças de água formadas pelas últimas chuvas
que desceram pelo telhado já aos pedaços. O forro também mal resistia ao apetite
faminto dos cupins.
Pichações
gravadas em símbolos e códigos indecifráveis nas paredes de tijolo dobrado e latas
vazias de tinta spray espalhadas pelo chão mostravam que o casarão se tornou também
ponto de encontro de grupos de pichadores. A luz do sol que entrava pelas
imensas aberturas em forma de arcos criava figuras geométricas nas poças de
lama.
Helena,
vestida de branco, se destacava no final do corredor engolido pelas sombras. Afonso
abriu os braços para recebê-la.
-
Que ideia, Afonso. Não tinha outro lugar pra marcar este encontro?
-
Com medo, princesa?
- É
claro. Sempre ouvi dizer...
-
Que este lugar era habitado por fantasma e alma penada. – completou ele – Que
besteira.
-
Besteira nada. Nem sei como eu consegui chegar aqui. Quando eu abri aquele
portão de ferro lá embaixo minhas pernas começaram a tremer.
-
Relaxa, agora você está comigo. Eu não tenho medo de fantasma e nem acredito em
alma de outro mundo.
- Só
estou aqui por que você insistiu muito. Que coisa tão importante é essa que
você tanto quer me contar?
-
Tudo há seu tempo, minha querida. Tudo há seu tempo.
Enquanto
Helena arrumava o cabelo Afonso a olhou de cima a baixo; estava linda dentro daquele
vestido branco. Perfeita. Ele não resistiu e beijou-lhe à boca. Ela se apertou
ainda mais junto ao peito dele. O coração batendo acelerado. Afonso passou o braço
pela cintura dela e os dois entraram em uma grande sala que devia ter sido a
sala de visitas do velho casarão. Quanta
coisa deve ter acontecido aqui, ele pensou. Um salão enorme cujas paredes repetiam
o mesmo estado de abandono da varanda. Palavras obscenas e declarações de amor junto
a corações apaixonados atravessados por flechas certeiras foram pichadas por
toda parte, depreciando o ambiente.
Uma
cristaleira em estilo clássico coberta por teias de aranha e poeira centenária foi
abandonada no fundo da sala. Vários objetos de louça foram deixados intactos
dentro dela inclusive um camafeu com a foto de um casal. Um homem calvo, de
barbas grossas e bem aparadas com o olhar sisudo e imponente por trás dos
óculos, posava ao lado de uma mulher feia em sua aparência também sisuda e desconfiada.
Afonso pegou o camafeu pela porta de vidro quebrado da cristaleira e leu os
nomes gravados atrás da peça.
-
Afonso, vamos embora daqui.
-
Tenha calma, meu bem.
-
Você ainda não me disse o porquê deste encontro.
- Este
lugar tem muita história pra contar, você não acha?
Helena,
um tanto incrédula, examinou todo o ambiente ao redor e depois encolheu os
ombros num gesto de desinteresse.
-
Que história, Afonso? Este lugar me dá medo e fede a abandono e à sujeira.
- Não
seja tão impaciente Helena. Eu quero que você conheça a história desta casa.
Uma história semelhante á nossa.
-
Olha, Afonso, eu já conheço a história desta casa e não estou me sentindo bem.
Vamos embora, por favor!
-
Hum... então você sabe o que aconteceu aqui?
-
Não sei e não tenho a mínima vontade de saber. Agora vamos sair daqui!
- Ok,
sua medrosa. Vamos.
Helena
tremia. Chegaram a outro cômodo repleto de móveis velhos, esquecidos e amontoados
em um canto. Ratos, protegidos entre as sombras, transitavam livremente pelo
assoalho. Passaram rápido pela cozinha, cujo local era o mais arejado da casa e
o cheiro de coisa velha e molhada não era tão intenso, embora revelasse os
mesmos sinais de abandono que os outros cômodos.
Lá
fora, o mato tomava conta de todo o terreno. Os vestígios daquilo que um dia
foi uma cocheira ainda resistiam ao tempo ao lado de uma pequena senzala também
em ruínas. Afonso levou Helena até a entrada da senzala cujo portão destruído
deixava o seu interior à mostra.
-
Que lugar é este, Afonso?
-
Aqui funcionou a senzala do casarão, meu bem.
-
Credo! Como você tem coragem de vir a um lugar desses onde as pessoas eram
torturadas? Posso sentir o sofrimento delas. – Helena observou o interior
deteriorado da senzala - Os escravos ficavam presos naquelas correntes
penduradas no teto?
- Sim.
E ali era o tronco onde eles eram açoitados. A chibata ainda está intacta pendurada
nele.
- Que
horror! Até agora eu não entendi o que estamos fazendo aqui.
- Tá
vendo este casal no camafeu?
-
Quem são?
- Os
donos deste casarão. Vou resumir a história deles pra você; eles foram os
barões do café no século dezenove. O curioso nessa história é que eles se
odiavam. E mesmo depois de casados continuaram se odiando. Cada um deles
possuía seus próprios serviçais, de modo, que os escravos do marido não serviam
à esposa e vice versa. O casal ficou famoso pela sua crueldade no trato com seus
negros. Quando um acordava de mau humor ele torturava até a morte o escravo do
outro por puro prazer. A tragédia definitiva aconteceu quando o barão descobriu
a traição da esposa. Sabe o que ele fez?
-
Não.
- Primeiro
ele mandou matar o amante dela. Esquaterjou o corpo dele e entregou os pedaços
para a família. Mandou trancar os escravos da mulher na senzala e ateou fogo.
Depois foi a vez de a esposa ser amarrada ao tronco e morrer a chibatadas.
- Era
essa história horrorosa que você queria que eu soubesse? Não entendi como essa
história absurda é parecida com a nossa.
Afonso
sorriu e acendeu um cigarro. Deixou que a fumaça fizesse desenhos no ar.
Acariciou o rosto de Helena e disse:
-
Traição.
- Que
conversa é essa, Afonso? Que disparate.
- Eu
sei de tudo, Helena.
-
Sabe de tudo o quê?
-
Tudo.
-
Afonso eu não sei do que você está falando.
Afonso
puxou Helena pela mão e a arrastou à força para dentro da senzala. Ela tropeçou
em uma pedra e caiu no chão. Um par de braceletes de ferro enferrujado pendia
em duas correntes amarradas ao teto. Afonso avançou sobre Helena e prendeu seus
pulsos nos braceletes.
-
Para com isso, Afonso! Me solta! Você tá me machucando! Eu vou gritar!
-
Grite o quanto quiser. Você já esqueceu que este velho casarão sempre foi habitado
por fantasmas e almas de outro mundo?
-
Chega Afonso. Cansei da sua brincadeira sem graça. Me solta. Eu quero ir embora.
-
Não vai, não. – Afonso se pôs na frente de Helena e pegou seu rosto com as mãos
– Você não está em condições de exigir nada. Por que você me traiu Helena?
- Do
que você está falando?
-
Não se faça de inocente! – gritou Afonso.
- Eu
não o traí.
- É
claro que sim. É o que é pior... você me trocou por uma mulher! Você acha que
eu vou aceitar isso?
-
Que mulher, Afonso?
- A Ana.
- Ela
é só uma amiga.
-
Não é o que estou sabendo.
- É
verdade! Quem anda enfiando essas idéias na sua cabeça, Afonso?
- Isso
não interessa. – Afonso puxou Helena pelos cabelos – Você e essa vaca escrota que
você chama de namorada armaram tudo. Só esperaram eu viajar para São Paulo para
me sacanear.
-
Não! Pelo amor de Deus, Afonso! Não é nada disso...
- Eu
nunca gostei dessa sua amizade.
Afonso
jogou Helena contra a parede frágil da velha senzala. Sacou o revólver e apontou
para a cabeça dela. Engatilhou a arma. Helena ameaçou um grito que foi sufocado
pelas lágrimas.
-
Afonso, ouça! Vamos conversar!
- Chega
de conversa fiada. A sua namoradinha vagabunda não terá o prazer de exibir você
como um troféu na minha cara. Isso nunca. Eu vou acabar com ela também.
-
Não Afonso! – Helena gritou – Pelo amor de Deus!
Afonso
sorriu. Guardou o revólver na cintura e totalmente surdo às súplicas de Helena,
foi até o tronco lá fora e voltou com a chibata nas mãos.
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