Aldo Campos Vieira
A vida passa ligeiro, cada vez mais ligeiro. Minha madrinha diz que é porque andamos sempre
pelo mesmo caminho, fazemos sempre as mesmas coisas, passamos por tudo e olhamos sem
enxergar. Já ao anoitecer, nem nos lembramos como foi o dia, dormimos, acordamos e
começamos tudo de novo. Ela é também minha professora e me deu um livro sobre borboletas.
Outros aqui acreditam piamente que o destino já está selado, hermeticamente selado, não
adianta querer escrever a sua própria história. Os caminhos, as trilhas, os atalhos já estão lá
marcados na eternidade como um percurso definido em um mapa.
Eu nunca acreditei muito nisso. Sempre quis fazer a minha própria trama. Às vezes, minha
imaginação voa tentando enxergar outros domínios, jardins mais floridos, novos perfumes...
Mas não vou negar. Eu cresci com essa tal espada do destino sobre a minha cabeça. Em vários
momentos pensei que Deus não tinha escrito uma boa história para mim. Somos onze filhos
dividindo com os pais uma casa simples de pau a pique, em um pequeno pedaço de terra na
zona rural do sertão nordestino.
Meu pai não consegue produzir o suficiente para nosso sustento. Minha mãe ajuda na roça e no
que pode. Apenas os três filhos mais jovens ainda estudam, eu e mais dois. Os outros já estão
na labuta com o pai, rezando para que neste ano a água finalmente caia do céu. Eles não
reclamam da vida, é o caminho que reconhecem. Mas eu não. Quero estudar, aprender e voar
mundo afora.
Quando as coisas estão muito difíceis, imagino que isso tudo é como um casulo, uma fase de
amadurecimento, como está escrito no livro que ganhei. Assim eu deixo meus sonhos vivos e
consigo levar alegria aonde vou. Minha mãe sempre diz que sou a luz da família, única filha
mulher, agora com nove anos.
Mas, mesmo seco e castigado, o sertão tem sua beleza e eu sempre dou um jeito de explorar os
arredores e observar o que mais admiro: a força das flores que teimam em brotar do solo quase
estéril. Nessas horas, a realidade parece se distanciar um pouco de mim.
Outro dia subi por uma trilha afastada que termina no alto de um morro, cuja formação rochosa
se ergue muito acima do chão e forma um enorme despenhadeiro. Quando chegava ao local,
ainda tinha um último restinho de sol. Apressei o passo, queria contemplar o mundo inteiro.
Era um local bonito com uma vegetação densa e várias espécies de flores que eu ainda não
conhecia. Faltando poucos metros para o ponto mais alto, dei de frente com três meninos. Eles
eram mais velhos do que eu, mas ainda traziam no rosto traços de uma certa inocência dos
moleques típicos do lugar. Sorri, mas senti o peso de olhares estranhos.
De repente um baque forte, e caí. Ainda zonza, vi minhas roupas serem arrancadas com
violência, tudo escureceu. Quando acordei, olhei em volta, sozinha, assustada, vi os três se
afastarem arrumando as roupas e rindo alto, sem nem olhar para trás. Eu não sabia muito bem
o que tinha acontecido, estava com muitas dores e quase desacordada, jogada no meio da
vegetação. Sentia o perfume das flores laceradas na angústia do ataque e uma estranha
metamorfose apoderar-se de mim.
Encolhi-me o mais que pude, teci com os braços um casulo em volta de meu corpo pequeno e
nu, me protegendo da noite fria que caía. Entre estranhos sonhos e calafrios, fiquei ali, quieta,
até finalmente amanhecer, crisálida, com a vida por um fio.
O sereno havia endurecido a minha pele. Abri os olhos lentamente e com esforço profundo
rompi o casulo. Os raios de sol tocaram minhas asas ainda frágeis, que foram se abrindo com o
calor forte, asas lindas como eu sempre sonhei. Usei as últimas energias que me restavam e
levantei, andei lentamente tentando me acostumar com aquele corpo transmudado, fui até a
beira do precipício e voei.
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