Depois daquele dia, Laila nunca mais foi a mesma. Tudo
começou por causa de uma solteirona que se mudara havia pouco para o prédio
defronte do seu. Bordadeira de mão cheia, mal o sol raiava, lá estava ela, na
sacada, com seu bastidor, suas agulhas e linhas coloridas. Ali passava o resto
do dia. Muito educada, falava baixo e sorria com parcimônia. Em seu aniversário
de quarenta anos, Laila resolveu convidá-la para a festa.
A vizinha chegou meio acanhada, com um presente caprichosamente
embalado em papel de seda e disse à aniversariante:
- Trouxe-lhe uma toalha bordada. Tirei o risco de sua história.
Laila não entendeu bem o que ela estava dizendo, mas não dava
para abrir o embrulho na hora, tinha que receber os outros convidados. Agradeceu
e colocou-o no baú dos presentes. Não viu mais a vizinha naquela noite. “Deve
ter se sentido deslocada e foi embora”, pensou sem remorso.
Terminada a festa, sentou-se no chão junto ao baú para
desembrulhar os presentes, mas, sob o efeito das taças de champanhe que havia
tomado, sentiu uma zonzeira boa e resolveu deixar aquela tarefa para mais tarde,
adormecendo ali mesmo.
Acordou com o sol batendo em seu rosto e, com os olhos
entreabertos, viu que as persianas estavam recolhidas. Achou estranho. Tinha
certeza de tê-las abaixado tão logo saíra o último convidado. Voltou-se para os
presentes do baú e se lembrou do delicado embrulho da vizinha. Remexeu, revirou
tudo e não o encontrou. Bateu o olho em sua mesa de vidro e sentiu um calafrio
na espinha: sobre ela havia uma toalha bordada.Laila nunca tinha forrado aquela
mesa, achava bonito o vidro descoberto, deixando à vista os pés de ferro
torneados. Seria aquela toalha o presente da vizinha? Mas quem a teria colocado
ali? Levantou-se com dificuldade e foi examiná-la de perto: nela estavam
bordadas, em pontos de sombra, cenas do que lhe pareceu ser um casamento
medieval. Lembrou-se das palavras da vizinha e teve uma vertigem, seus joelhos
dobraram-se e ela teria caído se duas mãos fortes não a tivessem amparado.
Ao sentir a rígida e gélida textura do corpo que se
encostava ao seu, assustou-se e se afastou. Estupefata, viu um cavaleiro que
parecia saído das histórias da Idade Média: vestia uma armadura e o rosto estava
encoberto por um gorro inteiriço, de tela, que deixava à mostra apenas um par
de olhos violeta e as grossas sobrancelhas. No canto da mesa, um elmo medieval confirmava
a estranha presença.
Laila teve nova vertigem e delicadamente o cavaleiro a
carregou para o quarto e a acomodou na cama, recostando-a em confortáveis
almofadas. Pegou na mesinha de cabeceira um bule de barro que exalava um aroma
exótico e deitou seu conteúdo fumegante na xícara, aproximando-a dos lábios entreabertos
da moça.Ela sorveu devagar aquele chá, que a aqueceu, e lançou ao cavaleiro um olhar comovido.
Ele então fechou as pesadas cortinas, tirou o gorro, beijou-lhe a boca e saiu do
quarto. Estranhamente, aquela cena pareceu a Laila totalmente familiar. Em
poucos minutos, ela sentiu as pálpebras pesarem, e os longuíssimos cílios
ruivos cerraram-separa o justo sono.
Quando despertou, muitas horas depois, se sentia com o vigor
de seus vinte anos. Foi ao banheiro e lavou o rosto. Seus poros exalavam um
cheiro extravagante, e ela imediatamente se lembrou do acontecido. Correu até a
sala e não encontrou ninguém. Foi à janela e não viu a vizinha e seu
indefectível bastidor. Entretanto, chamou-lhe a atenção o brilho de um objeto
dependurado no prego da parede lateral da sacada; espantada, viu que era um elmo
medieval.
Em meio a silogismos inúteis, pegou rispidamente a toalha,
com a intenção de jogá-la no lixo. Mas, surpreendentemente, o bordado anterior
havia sumido. Em seu lugar, estava bordada, em ponto cheio,uma cena de tango na
penumbra de um cabaré. No minuto seguinte, a sala ficou a media luz e ouviram-se os primeiros acordes de famoso tango
argentino.
Tanto na construção literária quanto no desenvolvimento do processo criativo, o texto é impecável. Deve ser lido muitas e muitas vezes.
ResponderExcluirCecé de Carvalho
Tanto na construção literária quanto no desenvolvimento do processo criativo, o texto é impecável. Deve ser lido muitas e muitas vezes.
ResponderExcluirCecé de Carvalho